O Livro de Cesário Verde | Page 8

Cesario Verde
rimado ás luzes dos planetas;?A abelha inda zumbia em torno da alfazema;?E ondulava o matiz das leves borboletas.
Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,?A imagem que inspirava os castos madrugaes;?E as vira??es, o rio, os astros, a pasizagem,?Traziam-me á memoria idyllios immortaes.
Diziam-me que tu, no florido passado,?Detinhas sobre mim, ao pé d'aquellas rosas,?Aquelle teu olhar moroso e delicado,?Que fala de languor e d'emo??es mimosas;
E, ó pallida Clarisse, ó alma ardente e pura,?Que n?o me desgostou nem uma vez sequer,?Eu n?o sabia haurir do calix da ventura?O nectar que nos vem dos mimos da mulher.
Falou-me tudo, tudo, em tons commovedores,?Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;?As falas quasi irm?s do vento com as flores?E a molle exhala??o das varzeas rescendentes.
Inda pensei ouvir aquellas coisas mansas?No ninho de affei??es creado para ti,?Por entre o riso claro, e as vozes das crean?as,?E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.
Lembrei-me muito, muito, ó symbolo das santas,?Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,?E sob aquelle ceo e sobre aquellas plantas?Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
E nosso bom romance escripto n'um desterro,?Com beijos sem ruido em noites sem luar,?Fizeram-m'o reler, mais tristes que um enterro,?Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.
Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas?Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,?E eu n?o beijarei, ás horas somnolentas,?Os dedos de marfim, polidos e delgados...
Eu, por n?o ter sabido amar os movimentos?Da estrophe mais ideal das harmonias mudas,?Eu sinto as decep??es e os grandes desalentos?E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.
E tudo emfim passou, passou como uma penna,?Que o mar leva no dorso exposto aos vendavaes,?E aquella doce vida, aquella vida amena,?Ah! nunca mais virá, meu lyrio, nunca mais!
ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!?Quando hontem eu pisei, bem magro e bem curvado,?A areia em que rangia a saia ro?agante,?Que foi na minha vida o ceo aurirosado,
Eu tinha t?o impresso o cunho da saudade,?Que as ondas que formei das suas illus?es?Fizeram-me enganar na minha soledade?E as azas ir abrindo ás minhas impress?es.
Soltei com devo??o lembran?as inda escravas,?No espa?o construi phantasticos castellos,?No tanque debrucei-me em que te debru?avas,?E onde o luar parava os raios amarellos.
Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,?Suster a minha fé, n'um veo consolador,?O teu divino olhar que as pedras amollece,?E ha muito que me prendeu nos carceres do amor.
Os teus pequenos pés, aquelles pés suaves,?Julguei-os esconder por entre as minhas m?os,?E imaginei ouvir ao conversar das aves?As celicas can??es dos anjos aos teus irm?os.
NOITE FECHADA
(L.)
Lembras-te tu do sabbado passado,?Do passeio que démos, devagar,?Entre um saudoso gaz amarellado?E as caricias leitosas do luar?
Bem me lembro das altas ruasinhas,?Que ambos nós percorremos de m?os dadas:?ás janellas palravam as visinhas;?Tinham lividas luzes as fachadas.
N?o me esque?o das cousas que disseste,?Ante um pesado templo com recortes;?E os cemiterios ricos, e o cypreste?Que vive de gorduras e de mortes!
Nós saíramos proximo ao sol-posto,?Mas seguiamos cheios de demoras;?N?o me esqueceu ainda o meu desgosto?Nem o sino rachado que deu horas.
Tenho ainda gravado no sentido,?Porque tu caminhavas com prazer,?Cara rapada, gordo e presumido,?O padre que parou para te ver.
Como uma mitra a cúpula da egreja?Cobria parte do ventoso largo;?E essa bocca vi?osa de cereja,?Torcia risos com sabor amargo.
A lua dava tremulas brancuras,?Eu ia cada vez mais magoado;?Vi um jardim com arvores escuras,?Como uma jaula todo gradeado!
E para te seguir entrei comtigo?N'um pateo velho que era d'um canteiro,?E onde, talvez, se fa?a inda o jazigo?Em que eu irei apodrecer primeiro!
Eu sinto ainda a fl?r da tua pelle,?Tua luva, teu veu, o que tu és!?N?o sei que tenta??o é que te impelle?Os pequeninos e can?ados pés.
Sei que em tudo attentavas, tudo vias!?Eu por mim tinha pena dos mar?anos,?Como ratos, nas gordas mercearias,?Encafunados por immensos annos!
Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros,?Que apparecem ao fundo d'umas minas,?E á crua luz os pallidos barbeiros?Com oleos e maneiras femininas!
Fins de semana! Que miseria em bando!?O povo folga, estupido e grisalho!?E os artistas d'officio iam passando,?Com as ferias, ralados do trabalho.
O quadro anterior, d'um que á candêa,?Ensina a filha a ler, metteu-me dó!?Gosto mais do plebeu que cambalêa,?Do bebado feliz que falla só!
De subito, na volta de uma esquina,?Sob um bico de gaz que abria em leque,?Vimos um militar, de barretina?E gal?es marciaes de pechisbeque,
E em quanto elle fallava ao seu namoro,?Que morava n'um predio de azulêjo,?Nos nossos labios retinio sonoro?Um vigoroso e formidavel beijo!
E assim ao meu capricho abandonada,?Errámos por travessas, por viellas,?E passámos por pé d'uma tapada?E um palacio real com sentinellas.
E eu que busco a moderna e fina arte,?Sobre a umbrosa cal?ada sepulchral,?Tive a rude inten??o de violentar-te?Imbecilmente como um animal!
Mas ao rumor dos ramos e d'aragem,?Como longiquos bosques muito ermos,?Tu querias no meio da folhagem?Um ninho enorme para nós vivermos.
E ao passo que eu te ouvia abstractamente,?ó grande pomba tépida que arrulha,?Vinham batendo o macadam
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