Frei Luiz de Sousa | Page 8

Almeida Garrett
é tirar-me dos teus braços, que o vou
incontrar alli...--oh perdoa, perdoa-me, não me sái ésta idea da

cabeça...--que vou achar alli a sombra despeitosa de D. João que me
está ameaçando com uma espada de dous gumes... que a atravessa no
meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para
sempre...--Que queres...? bem sei que é loucura; mas a idea de tornar a
morar alli, de viver alli comtigo e com Maria, não posso com ella. Sei
de certo que vou ser infeliz, que vou morrer n'aquella casa funesta, que
não estou alli tres dias, tres horas sem que todas as calamidades do
mundo venham sôbre nós.--Meu esposo, Manuel, marido da minha
alma, pelo nosso amor t'o peço, pela nossa filha... vamos seja para onde
for, para a cabana de algum pobre pescador d'esses contornos, mas para
alli não, oh! não.
*Manuel*. Em verdade nunca te vi assim; nunca pensei que tivesses a
fraqueza de accreditar em agouros. Não ha senão um temor justo,
Magdalena, é o temor de Deus; não ha espectros que nos possam
apparecer senão os das más acções que fazemos. Que tens tu na
consciencia que t'os faça temer? O teu coração e as tuas mãos estão
puras: para os que andam deante de Deus, a terra não tem sustos, nem o
inferno pavores que se lhes attrevam. Rezaremos por alma de D. João
de Portugal n'essa devota capella que é parte da sua casa; e não hajas
mêdo que nos venha perseguir n'este mundo aquella sancta alma que
está no ceu, e que em tam sancta batalha, pelejando por seu Deus e por
seu rei, acabou martyr ás mãos dos infieis.--Vamos, D. Magdalena de
Vilhena, lembrae-vos de quem sois e de quem vindes, senhora... e não
me tires, querida mulher, com vans chymeras de crianças, a
tranquillidade do espirito e a fôrça do coração, que as preciso inteiras
n'esta hora.
*Magdalena*. Pois que vais tu fazer?
*Manuel*. Vou, ja te disse, vou dar uma licção aos nossos tyrannos que
lhes hade lembrar, vou dar um exemplo a este povo que o hade
allumiar...
SCENA IX
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e
outros criados, _entrando apressadamente_.

*Telmo*. Senhor, desimbarcaram agora grande comitiva de fidalgos,
escudeiros e soldados que veem de Lisboa e sobem a incosta para a
villa. O arcebispo não é decerto, ja ca está ha muito no convento: diz-se
por ahi...
*Manuel*. Que são os governadores? (Telmo faz um signal affirmativo.)
Quizeram-me inganar, e appressam-se a vir hoje... parece que
adivinharam... Mas não me colheram desapercebido. (_Chama á porta
da esquerda) Jorge, Maria! (Volta para a scena_) Magdalena, ja, ja sem
mais demora.
SCENA X
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA, TELMO, MIRANDA e os
outros criados; JORGE e MARIA entrando.
*Manuel*. Jorge, acompanha éstas damas. Telmo, ide, ide com
ellas.--(Para os outros criados) Partiu ja tudo, as arcas, os meus
cavallos, armas e tudo o mais?
*Miranda*. Quasi tudo foi ja; o pouco que falta está prompto e sahirá
n'um instante... pela porta detrás, se quereis.
*Manuel*. Bom; que sáia. (A um signal de Miranda sahem dois
criados.) Magdalena, Maria, não vos quero ver aqui mais. Ja, ide; serei
comvosco em pouco tempo.
SCENA XI
MANUEL DE SOUSA, MIRANDA e os outros criados.
*Manuel*. Meu pae morreu desastrosamente cahindo sôbre a sua
propria espada; quem sabe se eu morrerei nas chammas ateadas por
minhas mãos? Seja. Mas fique-se aprendendo em Portugal como um
homem de honra e coração, por mais poderosa que seja a tyrannia,
sempre lhe póde resistir, em perdendo o amor a coisas tam vis e
precarias como são esses haveres que duas faiscas destroem n'um
momento... como é ésta vida miseravel que um sôpro póde apagar em

menos tempo ainda! (_Arrebata duas tochas das mãos dos criados,
corre á porta da esquerda, atira com uma para dentro: e ve-se atear logo
uma lavareda immensa. Vai ao fundo, atira a outra tocha; e succede o
mesmo. Ouve-se alarido de fóra_.)
SCENA XII
MANUEL-DE-SOUSA e criados: MAGDALENA, MARIA, TELMO
E JORGE accudindo.
*Magdalena*. Que fazes?... que fizeste?--Que é isto, oh meu Deus!
*Manuel*, tranquillamente. Illumino a minha casa para receber os
muito poderosos e excelentes senhores governadores d'estes reinos.
Suas excellencias podem vir quando quizerem.
*Magdalena*. Meu Deus, meu Deus!... Ai, e o retratto de meu
marido!... Salvem-me aquelle retratto.
(_Miranda e outro criado vão para tirar o painel; uma columna de fogo
salta nas tapeçarias e os afugenta_.)
*Manuel*. Parti, parti. As materias inflammaveis que eu tinha disposto
vão-se ateando com espantosa velocidade. Fugi.
*Magdadena*, cingindo-se ao braço do marido. Sim, sim, fujamos.
*Maria*, tomando-o do outro braço. Meu pae, nós não fugimos sem
vós.
(Redobram os gritos de fóra, ouve-se rebate de sinos; cai o panno.)

ACTO SEGUNDO
_É no palacio que fôra de D.
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