Frei Luiz de Sousa | Page 9

Almeida Garrett
João de Portugal, em Almada: salão
antigo de gôsto melancholico e pesado, com grandes retrattos de
familia, muitos de corpo inteiro, bispos, donnas, cavalleiros, monges;

estão em logar mais conspicuo, no fundo, o d'elrei D, Sebastião, o de
Camões e o de D. João de Portugal. Portas do lado direito para o
exterior, do esquerdo para o interior, cobertas de reposteiros com as
armas dos condes de Vimioso. São as antigas da casa de Bragança, uma
aspa vermelha sôbre campo de prata com cinco escudos do reino, um
no meio e os quatro nos quatros extremos da aspa; em cada braço e
entre os dois escudos uma cruz floreteada, tudo do modo que trazem
actualmente os duques de Cadaval; sôbre o escudo coroa de conde. No
fundo um reposteiro muito maior e com as mesmas armas cobre as
portadas da tribuna que deita sôbre a capella da Senhora da Piedade na
egreja de San'Paulo dos dominicos d'Almada_.
SCENA I
MARIA e TELMO
*Maria*, _sahindo pela porta da esquerda e trazendo pela mão a Telmo,
que parece vir de pouca vontade_. Vinde, não façaes bulha, que minha
mãe ainda dorme. Aqui, aqui n'esta sala é que quero conversar. E não
teimes, Telmo, que fiz tenção e acabou-se.
*Telmo*. Menina!...
*Maria*. «Menina e môça me levaram de casa de meu pae:» é o
principio d'aquelle livro tam bonito que minha mãe diz que não intende:
intendo-o eu.--Mas aqui não ha menina nem môça; e vós, senhor
Telmo-Paes, meu fiel escudeiro, «faredes o que mandado vos é.»--E
não me repliques, que então altercâmos, faz-se bulha, e acorda minha
mãe, que é o que eu não quero. Coitada! Ha oito dias que aqui estamos
n'esta casa, e é a primeira noite que dorme com socêgo. Aquelle palacio
a arder, aquelle povo a gritar, o rebate dos sinos, aquella scena toda...
oh! tam grandiosa e sublime, que a mim me encheu de maravilha, que
foi um espectaculo como nunca vi outro de egual majestade!... á minha
pobre mãe atterrou-a, não se lhe tira dos olhos: vai a fechá-los para
dormir, e diz que ve aquellas chammas innoveladas em fummo a
rodear-lhe a casa, a crescer para o ar, e a devorar tudo com furia
infernal... O retratto de meu pae, aquelle do quarto de lavor tam seu
favorito, em que elle estava tam gentil homem, vestido de cavalleiro de

Malta com a sua cruz branca no peito--aquelle retratto não se póde
consolar de que lh'o não salvassem, que se queimásse alli. Ves tu? ella
que não cria em agouros, que sempre me estava a reprehender pelas
minhas scismas, agora não lhe sái da cabeça que a perda do retratto é
prognostico fatal de outra perda maior que está perto, de alguma
desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pae.--E eu
agora é que faço de forte e assizada, que zombo de agouros e de
sinnas... para a animar, coitada!... que aqui entre nós, Telmo, nunca tive
tanta fe n'elles. Creio, oh se creio! que são avisos que Deus nos manda
para nos preparar.--E ha... oh! ha grande desgraça a cahir sôbre meu
pae... decerto! e sôbre minha mãe tambem, que é o mesmo.
*Telmo*, disfarçando o terror de que está tomado. Não digaes isso...
Deus hade fazê-lo por melhor, que lh'o merecem ambos. (_Cobrando
ânimo e exaltando-se_) Vosso pae, D. Maria, é um portuguez ás
direitas. Eu sempre o tive em boa conta; mas agora, depois que lhe vi
fazer aquella acção,--que o vi, com aquella alma de portuguez velho,
deitar a mão ás tochas, e lançar elle mesmo o fogo á sua propria casa;
queimar e destruir n'uma hora tanto do seu haver, tanta coisa de seu
gôsto, para dar um exemplo de liberdade, uma licção tremenda a estes
nossos tyrannos... oh minha querida filha, aquillo é um homem. A
minha vida que elle queira é sua. E a minha pena, toda a minha pena é
que o não conheci, que o não estimei sempre no que elle valia.
*Maria*, com as lagrymas nos olhos, e tomando-lhe as mãos. Meu
Telmo, meu bom Telmo!... É uma glória ser filha de tal pae: não é?
dize.
*Telmo*. Sim é: Deus o defenda!
*Maria*. Deus o defenda! amen.--E elles, os tyrannos governadores
ainda estarão muito contra meu pae? Ja soubeste hoje alguma coisa, das
diligências do tio Frei Jorge?
*Telmo*. Ja, sim. Vão-se desvanecendo--ainda bem!--os agouros de
vossa mãe... hãode sahir falsos de todo. O arcebispo, o conde de
Sabugal, e os outros, ja vosso tio os trouxe á razão, ja os moderou.
Miguel de Moura é que ainda está renitente; mas hade-lhe passar. Por

estes dias fica tudo socegado. Ja o estava se elle quizesse dizer que o
fogo tinha pegado por acaso. Mas ainda bem que o não quiz fazer; era
desculpar com
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