é bom que vas dar um relance d'olhos ao que por lá se faz: eu
tambem irei por minha parte.--Mas temos tempo: isto são oito horas, á
meia noite vão quatro; d'aqui lá o pouco que me importa salvar estará
salvo... e elles não virão antes da manhan.
*Magdalena*. Então sempre é verdade que Luiz de Moura e os outros
governadores?...
*Manuel*. Luiz de Moura é um villão ruim, faz como quem é: o
arcebispo é... o que os outros querem que elle seja. Mas o conde de
Sabugal, o conde de Sancta-Cruz, que deviam olhar por quem são, e
que tomaram este incargo odioso... e vil, de opprimir os seus naturaes
em nome de um rei extrangeiro!... Oh que gente, que fidalgos
portuguezes!... Heide-lhes dar uma licção, a elles, e a este escravo
d'este povo que os soffre, como não levam tyrannos ha muito tempo
n'esta terra.
*Maria*. O meu nobre pae! Oh, o meu querido pae! Sim, sim,
mostrae-lhes quem sois e o que vale um portuguez dos verdadeiros.
*Magdalena*. Meu adorado espôso, não te deites a perder, não te
arrebates. Que farás tu contra esses poderosos? Elles ja te querem tam
mal pelo mais que tu vales que elles, pelo teu saber--que esses grandes
fingem que desprezam... mas não é assim, o que elles teem é inveja!--O
que fará, se lhes deres pretexto para se vingarem da affronta em que os
traz a superioridade do teu merito!--Manuel, meu espôso, Manuel de
Sousa, pelo nosso amor...
*Jorge*. Tua mulher tem razão. Prudencia, e lembra-te de tua filha.
*Manuel*. Lembro-me de tudo, deixa estar.--Não te inquietes,
Magdalena: elles querem vir para aqui ámanhan de manhan; e nós
forçosamente havemos de sahir antes d'elles entrarem. Por isso é
preciso ja.
*Magdalena*. Mas para onde iremos nós, derepente, a éstas horas?
*Manuel*. Para a unica parte para onde podêmos ir: a casa não é
minha... mas é tua, Magdalena.
*Magdalena*. Qual?... a que foi?... a que péga com San'Paulo?... Jesus
me valha!
*Jorge*. E fazem muito bem: a casa é larga e está em bom reparo, tem
ainda quasi tudo de trastes e paramentos necessarios: pouco tereis que
levar comvosco.--E então para mim, para os nossos padres todos que
alegria! Ficâmos quasi debaixo dos mesmos telhados.--Sabeis que
tendes alli tribuna para a capella da Senhora da Piedade, que é a mais
devota e a mais bella de toda a egreja... Ficâmos como vivendo junctos.
*Maria*. Tomára-me eu ja lá. (Levânta-se pulando.)
*Manuel*. E são horas, vamos a isto. (Levantando-se.)
*Magdalena*, vindo para elle. Ouve, escuta, que tenho que te dizer;
por quem es, ouve: não haverá algum outro modo?
*Manuel*. Qual, senhora, e que lhe heide eu fazer? Lembrae vós, vêde
se achaes.
*Magdalena*. Aquella casa... eu não tenho ânimo... Olhae: eu preciso
de fallar a sos comvosco.--Frei Jorge, ide com Maria ahi para dentro;
tenho que dizer a vosso irmão.
*Maria*. Tio, venha, quero ver se me accommodam os meus livrinhos;
(confidencialmente) e os meus papeis, que eu tambem tenho papeis:
deixae que lá na outra casa vos heide mostrar... Mas segrêdo?
*Jorge*. Tontinha!
SCENA VIII
MANUEL DE SOUSA, MAGDALENA
*Manuel*. _passeia agitado de um lado para o outro da scena, com as
mãos cruzadas detrás das costas, e parando derepente_: Hade saber-se
no mundo que ainda ha um portuguez em Portugal.
*Magdalena*. Que tens tu, dize, que tens tu?
*Manuel*. Tenho que não heide soffrer ésta affronta... e que é preciso
sahir d'esta casa, senhora.
*Magdalena*. Pois sahiremos, sim: eu nunca me oppuz ao teu querer,
nunca soube que coisa era ter outra vontade differente da tua; estou
prompta a obedecer-te sempre, cegamente, em tudo. Mas, oh! espôso
da minha alma... para aquella casa não, não me leves para aquella casa.
(_Deitando-lhe os braços ao pescoço_.)
*Manuel*. Ora tu não eras costumada a ter caprichos! Não temos outra
para onde ir: e a éstas horas, n'este appêrto... Mudaremos depois, se
quizeres... mas não lhe vejo remedio agora.--E a casa que tem? Porque
foi de teu primeiro marido! é por mim que tens essa repugnancia? Eu
estimei e respeitei sempre a D. João de Portugal; honro a sua memória,
por ti, por elle e por mim; e não tenho na consciencia por que receie
abrigar-me debaixo dos mesmos tectos que o cobriram.--Viveste alli
com elle? Eu não tenho ciumes de um passado que me não pertencia. E
o presente, esse é meu, meu so, todo meu, querida Magdalena... Não
fallêmos mais n'isso; é preciso partir, e ja.
*Magdalena*. Mas é que tu não sabes... eu não sou melindrosa nem de
invenções: em tudo o mais sou mulher, e muito mulher, querido; n'isso
não... mas tu não sabes a violencia, o constrangimento d'alma, o terror
com que eu penso em ter de entrar n'aquella casa. Parece-me que é
voltar ao podêr d'elle, que

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