A Paranoia | Page 2

Julio de Mattos
porém, a consideração de um
delirio limitado foi, talvez por mais apparente, predominando sobre a
de um estado mental depressivo na caracterisação da melancolia, como
se vê nos auctores que succederam a Areteu. Procurando, com effeito,

differenciar a melancolia da mania, elles não o faziam pondo em
contraste os estados emotivos que acompanham estas vesanias, mas
proclamando que na primeira o delirio é limitado, unico e absorvente,
ao passo que na segunda elle é multiplo, geral e dispersivo.
Repetindo-se atravez dos tempos, esta doutrina que faz prevalecer o
elemento intellectual sobre o emotivo, conquista de tal modo as
opiniões que no seculo XVII melancolia e delirio parcial tornam-se
termos equivalentes. Assim Sennert a definia: «Uma concentração da
alma sobre a mesma idéa ou um delirio que se exerce sobre um
pensamento, falso quasi exclusivo».[1]
[1] Vid. Morel,Traité des maladies mentales, pag. 54.
Nenhuma idéa de emoção depressiva e dolorosa se encontra n'esta e
analogas definições, em que, pelo contrario, a unidade do delirio figura
como elemento exclusivo. O angor animi de Areteu desapparecera,
restando apenas da antiga definição o conceito de um espirito absorvido
in una cogitatione. Logicamente, pois, incluiram os medicos do seculo
XVII o delirio de grandezas no quadro clinico da melancolia. Sob o seu
ponto de vista, com effeito, tanto valem os perseguidos como os
megalomanos, porque uns e outros são, no dizer de Sennert, doentes
«cuja razão se acha pouco alterada ou apenas alterada em relação a um
objecto», isto é, por definição, melancolicos. Entre estes collocava o
auctor que acabamos de citar, um doente julgando-se monarcha do
Universo e cuja razão, só parcialmente lesada, lhe permittia «dissertar
perfeitamente sobre as mais graves questões». Plater, ao lado dos
melancolicos sitiophobos «receiando envenenamentos e accusando de
hostilidade e perfidia os seus mais intimos amigos», collocava doentes
«possuidos das idéas de opulencia e de realeza».
A unidade do delirio e não a natureza d'elle ou das emoções que o
acompanham, constituia no seculo XVII, como se vê, a caracteristica
dos estados melancolicos. De resto, Sennert explicitamente affirmava
que «na melancolia o delirio é muitas vezes alegre».
Os medicos do seculo XVIII acceitaram unanimemente a doutrina que
no quadro clinico da melancolia fazia entrar a titulo de variedades os

delirios de perseguições e de grandezas. Para Sauvages, por exemplo, o
delirio exclusivo caracterisava a melancolia; mais explicito, Lorry
descreveu como fórma d'esta vesania «um delirio parcial exaltado com
paixão excitante».
A primeira metade do nosso seculo não trouxe modificação sensivel a
estas idéas. Rusch descrevia em 1812 duas variedades melancolicas,
uma triste, tristimania, outra alegre, aménomania. Pinel admittia
igualmente duas fórmas de melancolia: uma depressiva e outra
ambiciosa, caracterisadas por um delirio parcial. «Nada mais
inexplicavel, diz elle, e, todavia, nada mais verificado que a existencia
de duas fórmas oppostas da melancolia. É algumas vezes uma explosão
de orgulho e a idéa chimerica de possuir immensas riquezas e um poder
sem limites, outras vezes o abatimento mais pusilanime, uma
consternação profunda e mesmo o desespero»[1].
[1] Pinel, Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale, pag.
165.
Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo,
as idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de
monomania o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou
especies: uma, depressiva, a lypemania, outra, expansiva, a monomania
propriamente dita. A lypemania, que não é senão a tristimania de
Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende
entre outras variedades o delirio de perseguições, ainda então
innominado; a monomania propriamente dita, que equivale á
aménomania de Rusch e á melancolia de fórma expansiva de Pinel, é
por elle definida «um delirio parcial ou monomania alegre», e
comprehende os delirios de grandezas, não só o idiopatico, mas, como
se vê nos casos que aponta, o symptomatico da paralysia geral, ao
tempo ainda não descripta.
Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol
transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que
lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o
extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás
psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente

perigosa.
No seu Tratado das Doenças Mentaes affirma Esquirol que o termo
monomania adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario
da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é
confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com
significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes,
ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e
de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o
mesmo que a melancolia dos antigos--uma affecção parcial do
entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a
palavra monomania foi insensivelmente generalisada pelo proprio
Esquirol no sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de
qualquer faculdade: ao lado de uma monomania intellectual, tem logar
uma monomania affectiva e uma monomania impulsiva. Delirios
systematisados, emoções procedentes de idéas
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