Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 3

Júlio Dinis
nova organisa??o social.
Instituiu-se alli uma pequena c?rte na aldeia, uma especie de assembleia ou conventiculo politico, que n?o poucas vezes attrahiu as vistas dos liberaes desconfiados e as amea?as dos mais insoffridos. Havia alli homens de todas as condi??es, e alguns de illustra??o e sciencia.
A hospitalidade do fidalgo era magnifica. D. Luiz mostrava ignorar, ou n?o querer saber, qual o pre?o por que ella lhe ficava. Indifferente a tudo, dir-se-ia sêl-o tambem á ruina da sua propria casa, que apressava assim.
A victoria da causa contraria; a morte, em curtos intervallos, de tres filhos, que parecia cahirem victimas de uma senten?a fatal; o receio pela vida dos outros; a tristeza e doen?a progressivas da esposa, a quem aquelles odios e luctas tinham despeda?ado o cora??o; ás vezes uma vaga consciencia da sua situa??o precaria, e por ventura ainda remorsos pelas violencias, a que os odios politicos o impelliram, quebrantaram o caracter, outr'ora varonil, d'aquelle homem, que desde ent?o come?ou a mostrar-se taciturno e descoro?oado. A prova evidente de que alguns remorsos tambem lhe torturavam o espirito f?ra a insolita generosidade, com que recebeu e gasalhou permanentemente em sua casa um pobre soldado do exercito liberal, meio mutilado pela guerra d'esses tempos, e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo, contra quem tanto se encarni?ára o odio do implacavel realista.
Viera o soldado entregar á esposa do fidalgo uma medalha, ultima lembran?a do irm?o que lh'a enviára, quando já agonisante no campo do combate. Havia-a confiado ao camarada para que a entregasse áquella, a quem tanto queria.
D. Luiz n?o só permittiu que o soldado fizesse a entrega em m?o propria da esposa, mas deixou-o com ella em larga conferencia, n?o querendo que a sua presen?a a reprimisse na ancia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz, de quem o emissario f?ra companheiro inseparavel. N?o se limitou a isso a tolerancia do fidalgo. Viu, sem a menor reflex?o, que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca, e n?o opp?z resistencia alguma ao pedido, que a esposa mais tarde lhe fez para que o deixasse ficar alli, no logar do hortel?o que fallecêra.
Este facto insignificante foi de n?o pequena influencia nos destinos d'aquella familia.
Os filhos de D. Luiz, creados no meio d'essa c?rte de provincia, cresciam sob influencias que actuavam d'uma maneira contradictoria sobre os seus caracteres infantis.
N?o lhes faltavam mestres que os instruissem, que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refugio de tantos illustres descontentes. Gra?as a estas especiaes condi??es, puderam os dois rapazes receber uma educa??o, difficil de conseguir em um canto t?o retirado da provincia, como aquelle era.
Mas, ao lado da li??o dos mestres, que, juntamente com a sciencia, se esfor?avam por imbuir-lhes os seus principios politicos, aos quaes se atinham como a artigos de fé, havia uma outra li??o mais obscura, mas por ventura mais efficaz. Era a li??o da m?e e a do veterano.
A esposa de D. Luiz era uma senhora de esmeradissima educa??o e de um profundo bom senso. Amava o marido, mas via com pezar os excessos, a que o impelliam as suas opini?es politicas. Educada no seio de uma familia liberal, possuia sentimentos favoraveis ás ideias novas; mas sabia guardal-os no cora??o, para n?o despertar conflictos na familia.
Porém, no tracto intimo entre m?e e filhos, trahia-se muita vez essa prudente discri??o, e as fidalgas crian?as iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasphemavam como de heresias, e naturalmente, seduzidas pela origem d'onde ella lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o cora??o, do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres.
Demais, ouviam tantas vezes a m?e fallar-lhes do irm?o que perdêra, dos seus sentimentos generosos, do seu nobre caracter e da sua dedica??o heroica a bem da causa liberal, que elles, e o mais velho sobre tudo, costumaram-se a venerar a memoria do tio, como a de um heroe e a de um martyr e a vêl-o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario.
Para isto porém concorreu mais que outrem o hortel?o.
O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e fa?anhas d'aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official, cujo ultimo suspiro recolhêra.
As crian?as sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho, em cujas narra??es pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel. Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigra??o, dos episodios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhecêra de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.
As crian?as n?o se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos
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