Os fidalgos da Casa Mourisca | Page 2

Júlio Dinis
do eirado, mutilára-lhe a cruz da capella, desconjunctára-lhe a cantaria em extensos lan?os de muro, abrindo-lhe intersticios, d'onde irrompia uma inutil vegeta??o parasita: e esta permanencia de estragos, trahindo a incuria ou a insufficiencia de meios do proprietario actual, iniciava no espirito do observador uma serie de melancolicas reflex?es.
E se o movesse a curiosidade a indagar na visinhan?a informa??es sobre a familia que alli habitava, obtel-as-ia proprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontaneos juizos.
Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram actualmente tres. D. Luiz, o pae, velho sexagenario, grave, severo, e taciturno; Jorge e Mauricio, os seus dois filhos, robustos e esbeltos rapazes: o mais velho dos quaes, Jorge, ainda n?o completára vinte e tres annos.
A historia d'aquella casa era a historia sabida dos ricos fidalgos da provincia, que, orgulhosos e imprevidentes, deixaram, a pouco e pouco, embara?ar as propriedades com hypothecas e contractos ruinosos, desfallecer a cultura nos campos, empobrecer os celleiros, despovoar os curraes, exhaurir a seiva da terra, transformar longas varzeas em charnecas, e desmoronarem-se as paredes das residencias e das granjas e os muros de circunscrip??o das quintas.
Filho segundo de uma das mais nobres familias da provincia, D. Luiz f?ra pelos paes destinado para a carreira diplomatica, na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da c?rte.
Nas primeiras capitaes da Europa, em cujas embaixadas serviu, obteve o fidalgo provinciano um grau de illustra??o e de tracto do mundo, um verniz social, que nunca adquiriria se, como tantos, de mo?o se creasse para morgado.
Quando, por morte do primogenito, veio a succeder nos vinculos, D. Luiz podia considerar-se, gra?as á occupa??o dos seus primeiros annos de mocidade, como o mais instruido e civilisado proprietario da sua provincia; e como tal effectivamente foi sempre havido pelos outros, que o tractavam com uma deferencia excepcional.
Ainda depois da morte do irm?o, D. Luiz, costumado ao viver da grande sociedade e á esplendida elegancia das c?rtes estrangeiras, n?o abandonou a carreira que encetára. Secretario de embaixada em Vienna, casou alli com a filha de um fidalgo portuguez, que ent?o residia n'essa corte, encarregado de negocios politicos.
Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros symptomas da profunda revolu??o, que devia alterar a face social do paiz, D. Luiz mostrou-se logo hostil ao movimento nascente, e abandonando ent?o o seu logar diplomatico, voltou ao reino para representar um papel importante nas scenas politicas d'essa época.
Ahi tiveram origem grande parte dos desgostos domesticos, que lhe amarguraram o resto da vida.
Os parentes de sua esposa abra?aram a causa liberal.
D. Luiz, com toda a intolerancia partidaria, rompeu completamente as rela??es com elles, ferindo assim no intimo os affectos mais sanctos da pobre senhora, que sentia esmagar-se-lhe o cora??o entre as fortes e irreconciliaveis paix?es dos que ella com igual affecto amava.
O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luiz. Impelliu-o á persegui??o.
O irm?o mais novo da esposa, obedecendo ao enthusiasmo de rapaz e á vehemencia de uma convic??o sincera, sustentára com a penna, e mais tarde com a espada, a causa da ideia nova, que tanto namorava os animos generosos e juvenis.
Sobre a bella e arrojada cabe?a d'aquelle adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vingan?as politicas; e D. Luiz, cego pela paix?o, n?o duvidou em fazer-se instrumento d'ellas.
Este era o irm?o querido da esposa, que o fidalgo estremecia; mas nem as supplicas, nem as lagrimas d'ella puderam abrandar a for?a d'aquelle rancor.
O imprudente mo?o viu-se perseguido, prêso, processado e em quasi imminente risco de expiar, como tantos, no supplicio o crime de pensar livremente. Conseguindo, quasi por milagre, escapar á furia dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde n'essa memoranda expedi??o, que principiou em Portugal a heroica iliada da nossa emancipa??o politica.
Guerreiro t?o fogoso, como o f?ra publicista, o pobre rapaz n?o assistiu porém á victoria da sua causa. Ao raiar da aurora liberal, por que tanto anhelava, cahiu em uma das ultimas e mais disputadas refregas d'aquella sanguinolenta lucta, crivado de balas inimigas, sendo a sua ultima voz um grito de enthusiasmo pela grande ideia, em cujo martyrologio se ia inscrever o seu nome.
A morte d'este enthusiasta levou o lucto e a tristeza ao solar de D. Luiz. O cora??o amoravel e extremoso da infeliz senhora recebeu ent?o um golpe decisivo; das consequencias d'aquella d?r nunca mais podia ella convalescer. A sua vida foi depois toda para luto e para lagrimas.
Fez-se a paz, implantou-se no paiz a arvore da liberdade; D. Luiz deixou ent?o a vida da c?rte e veio encerrar no canto da provincia os seus despeitos, os seus odios e os seus desalentos. Trouxe comsigo um enxame de misanthropos, a quem o sol da liberdade igualmente incommodava, e que tinham resolvido pedir á natureza conforto contra os suppostos delictos da humanidade.
O solar do fidalgo transformou-se pois em asylo de muitos correligionarios, como elle desgostosos e irreconciliaveis com a
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