soffri, o que passei,
Um dia, noutra carta, o saberás. 
MÃOS FRIAS CORAÇÃO QUENTE 
Dez da manhã. Vento da
serra. Tres graus negativos 
_Mãos frias, coração quente_!
Quanta vez isto dizias
Com o teu ar 
sorridente,
Apertando-me as mãos frias... 
Agora decerto o tenho
Num brazeiro, num vulcão.
O frio é tanto, é 
tamanho
Que a penna cae-me da mão... 
Q'ria dizer-te o que penso
E o que faço e premedito,
Mas posso lá 
ser extenso
Com este frio maldito! 
Tu perdoas certamente,
Tu não te zangas, pois não?
_Mãos frias, 
coração quente_
--Lá diz o velho rifão... 
NOIVA 
_A João da Silva_ 
«Anda a dôr dissimulada
Mas ella dará seu fruito.» 
Crisfal
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia.» 
(Trecho duma carta) 
Tive noticias hoje a teu respeito:
«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquillo no meu peito
--Continuou a bater como 
batia... 
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciume? Nem sequer saudade?!
--E nem ciumes, nem 
saudade achava... 
Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste 
coração)
Como em Pompeia aquelles grãos de trigo
Que após 
centenas d'annos deram pão... 
Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o proprio 
mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dôr nas almas 
cava fundo? 
Causei-te longas horas d'amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar--lá fica a cicatriz. 
Á luz dum juramento que trahiste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse 
dia, aos dois... 
Ciumes tambem não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te 
houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais 
humano o teu peccado. 
Porém, embora a tua falta aponte,
P'ra mim és a que foste (ou que eu 
suppuz);
O sol desapparece no horisonte
--E a gente vê-o ainda a 
dar-nos luz... 
Póde a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d'elevados
cumes.
O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,
Vendo-o tão alto, não 
terei ciumes. 
Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,
Em claras noites de luar 
silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz 
devotamente. 
Versos para te ungirem os ouvidos
E os labios d'anemica e de santa,
Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os 
acolheu e os canta. 
Então, se te olhar bem, logo adivinha...
Logo sombriamente se 
convence
De que a tua alma se fundiu na minha
--E apenas o teu 
corpo lhe pertence. 
DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE 
_Á Leo_ 
Ao charco mais escuso e mais immundo
Chega uma hora no correr do 
dia
Em que um raio de sol, claro e jocundo,
O visita, o alegra, o 
alumía; 
Pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
Nesta contínua e 
intérmina agonia,
Nem tenho uma hora só dessa alegria
Que chega 
ás coisas infimas do mundo!... 
Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leaes
Num aceno impulsivo e repentino, 
Sem que na cega turbulencia a domem?!
Senhor! Não é um seixo o 
que esmagaes;
Olhae que é--_o coração dum homem_!... 
JOANNINHA 
_A Mayer Garção_
Descance de quando em quando...
Passar assim toda a tarde
Sempre 
bordando, bordando,
Sem que um momento desista,
Até faz pena! 
Não lhe arde
Nem se lhe perturba a vista?... 
Descance de quando em quando...
Erga os olhos do bordado
E veja 
quem vae passando.
O trabalho alegra a gente,
Mas assim, tão 
aturado,
--Não lhe faz bem certamente. 
Erga a carinha tranquilla,
Erga esse rosto tão lindo
E veja os moços 
da villa
A passarem por aqui,
Uns descendo, outros subindo,
--E 
todos d'olhos em si... 
Descance de quando em quando
E veja se escolhe algum;
Já é 
tempo d'ir pensando
Em casar. Não é assim?...
Se não lhe agrada 
nenhum,
--Diga se gosta de mim. 
Desde os começos do outono
Que eu a trago no sentido,
Não como, 
não tenho sono,
Tudo me dá ralação?
Quer-me para seu marido?
--Diga que sim ou que não... 
QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM... 
A Cassianno Neves 
Bocca talhada em milagrosas linhas,
A luz augmenta com o seu falar. 
Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar. 
Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ella lhes 
dissera, 
--E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltára a primavera... 
A PARÁBOLA DO PUCARO D'AGUA 
Acreditaram os romanticos que a arte residia principalmente na
disformidade. Se atravez das proprias dores descessem ás profundas 
realidades da vida, teriam observado que... o viver do povo encerra em 
si uma poesia sagrada. Sentil-a e mostral-a não é tarefa de machinista; 
para tal, não é necessario juntar-lhe effeitos theatraes. 
... O que é preciso é ter olhos para vêr na sombra, na pequenez e na 
humildade, é um coração que auxilie a vista nestes recessos do lar, 
nestas sombras de Rembrandt. 
MICHELET_. _O Povo 
A Manuel Penteado 
Buscava em algum assunto adrede
A versos que inculcassem 
novidade,
Quando uma intensa e irreprimivel sêde
Me fez voltar do 
sonho á realidade. 
E pedi agua (já se vê) que veio
Consoante é d'uzo cá por entre o povo
Num pucaro de barro ingenuo e feio,
Servindo-lhe de salva um 
prato côvo. 
Bebi o liquido dum trago só;
E dito o «Deus te pague» habitual,
Subi de novo a escada de Jacob
No    
    
		
	
	
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