Clepsydra | Page 2

Camillo Pessanha
Porque me callas
As
vozes com que ha pouco me enganavas?
Castellos doidos! Tão cedo cahistes!...
Onde vamos, alheio o
pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento

Prescrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cahe nupcial a neve,
Surda, em triumpho, petalas, de leve

Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um veo!
¿Quem as esparze--quanta

flôr--, do ceo,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabellos?
E eis quanto resta do idyllio acabado,
--Primavera que durou um
momento...
Como vão longe as manhãs do convento!
--Do alegre
conventinho abandonado...
Tudo acabou... Anemonas, hydrangeas.
Silindras,--flôres tão nossas
amigas!
No claustro agora víçam as ortigas,
Rojam-se cobras pelas
velhas lageas.
Sobre a inscripção do teu nome delìdo!
--Que os meus olhos mal
podem solletrar,
Cançados... E o aroma fenecido
Que se evola do teu nome vulgar!
Ennobreceu-o a quietação do
olvido.
Ó doce, ingenua, inscripção tumular.
Singra o navio. Sob a agua clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...

--Impeccavel figura peregrina,
A distancia sem fim que nos sepára!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente côr de rosa,

Na fria transparencia luminosa
Repousam, fundos, sob a agua
plana.
E a vista sonda, reconstrue, compára.
Tantos naufragios, perdições,
destróços!
--Ó fulgida visão, linda mentira!
Roseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivem
desengastára...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
Foi um dia de inuteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!...

Fulgiam nuas as espadas frias...
Dia de sol, inundado de sol!...
Foi um dia de falsas alegrias.
Dáhlia a esfolhar-se,--o seu molle
sorriso...
Voltavam os ranchos das romarias.
Dáhlia a
esfolhar-se,--o seu molle sorriso...

Dia impressivel mais que os outros dias.
Tão lúcído... Tão pallido...
Tão lúcido!...
Diffuso de theoremas, de theorias...
O dia futil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...

Tão lúcido... Tão pallido... Tão lúcído!...
Passou o outono já, já torna o frio...
--Outono do seu riso maguado.

Algido inverno! Obliquo o sol, gelado...
--O sol, e as aguas limpidas
do rio.
Aguas claras do rio! Aguas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cançado,

Para onde me levaes meu vão cuidado?
Aonde vaes, meu coração
vazío?
Ficae, cabellos d'ella, fluctuando,
E, debaixo das aguas fugidias,
Os
seus olhos abertos e scismando...
Onde ides a correr, melancolias?
--E, refractadas, longamente
ondeando,
As suas mãos translucidas e frias...
Quando voltei encontrei os meus passos
Ainda frescos sobre a
humida areia,
A fugitiva hora, reevoqueia,
--Tão redíviva! nos meus
olhos baços...
Olhos turvos de lagrimas contidas.
--Mesquinhos passos, porque
doidejastes
Assim transviados, e depois tornastes
Ao ponto das
primeiras despedidas?
Onde fostes sem tino, ao vento vario,
Em redor, como as aves n'um
aviario,
Até que a azita fôfa lhe falleça...
Toda essa extensa pista--para quê?
Se ha-de vir apagar-vos a maré,

Como as do novo rasto que começa...
Imagens que passaes pela retina
Dos meus olhos, porque não vos
fixaes?
Que passaes como a agua crystallina
Por uma fonte para

nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncaes,

E o vago mêdo angustioso domina,
--Porque ides sem mim, não me
levaes?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
--O espelho inutil, meus
olhos pagãos!
Aridez de successivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos
incertos,
--Estranha sombra em movimentos vãos.
POESIAS
Quando se erguerão as setteiras,
Outra vez, do castello em ruina,
E
haverá gritos e bandeiras
Na fria aragem matutina?
Se ouvírá tocar a rebate
Sobre a planicie abandonada?
E sahiremos
ao combate
De cota e elmo e a longa espada?
Quando iremos, tristes e sérios,
Nas prolixas e vãs contendas,

Soltando juras, improperios,
Pelas divisas e legendas?
E voltaremos, os antigos
E purissimos lidadores,
(Quantos trabalhos
e perigos!)
Quasi mortos e vencedores?
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . .
E quando, ó Dôce Infanta Real,
Nos sorrirás do belveder?
--Magra
figura de vitral,
Por quem nós fomos combater...
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dôr me fere,
em busca de um abrigo;
E apesar d'isso, crê! nunca pensei num lar

Onde fosses feliz, e eu feliz comtigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns

versos romanticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito

Como a esposa sensual do _Cantico dos canticos_.
Se é amar-te não sei. Não seí se te idealiso
A tua côr sadia, o teu
sorriso terno,
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me
penetra bem, como este sol de inverno.
Passo comtigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que
enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio

Nem me lembrei jámais de te beijar na bôca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a
minha alma presente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,

Que adoecia talvez de te saber doente.
Rufando apressado,
E bamboleado.
Bonet posto ao lado,
Garboso, o tambor
Avança em redor
Do campo de amor...
Com força, soldado!
A passo dobrado!
Bem bamboleado!
Amores te bafejem.
Que as moças te beijem.
Que os moços te
invejem.
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