a 
quem Simão Craveiro chamava o «Castanheiro Patriotinheiro», fundára 
um Semanario, a *Patria*--«com o alevantado intento (affirmava 
sonoramente o Prospecto) de despertar, não só na mocidade Academica, 
mas em todo o paiz, do cabo Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor 
tão arrefecido das bellezas, das grandezas e das glorias de Portugal!» 
Devorado por essa idéa, «a sua Idéa», sentindo n'ella uma carreira, 
quasi uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de 
Apostolo, clamava pelos botequins da Sophia, pelos claustros da 
Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos 
cigarros,--«a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, 
caramba, Portugal da alluvião do estrangeirismo!»--Como o Semanario 
appareceu regularmente durante tres Domingos, e publicou realmente 
estudos recheiados de griphos e citações sobre as Capellas da Batalha, 
a Tomada d'Ormuz, a Embaixada de Tristão da Cunha, começou logo a 
ser considerado uma aurora, ainda pallida mas segura, de Renascimento 
Nacional. E alguns bons espiritos da Academia, sobretudo os 
companheiros de casa do Castanheiro, os tres que se occupavam das 
cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres restantes um era 
homem de cacete e forças, o outro guitarrista, e o outro «premiado»),
passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a esquadrinhar na 
Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados de Fernam 
Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendas--«só portuguezas, 
só nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem á nação 
abatida uma consciencia da sua heroicidade!» Assim crescia o 
Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi então que Gonçalo 
Mendes Ramires, moço muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura 
sã de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se 
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos 
sapatos--apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almoço, 
onze tiras de papel intituladas D. Guiomar. N'ellas se contava a 
velhissima historia da castellã, que, emquanto longe nas guerras do 
Ultra-mar o castellão barbudo e cingido de ferro atira a acha-d'armas ás 
portas de Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os braços nús, por 
noite de Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o 
inverno, o castellão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro. 
Pelo villico do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos, 
conhece a traição, a macula no seu nome tão puro, honrado em todas as 
Hespanhas! E ai do pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. 
Já no patim da Alcaçova o verdugo, de capuz escarlate, espera, 
encostado ao machado, entre dous cepos cobertos de pannos de dó... E 
no final choroso da D. Guiomar, como em todas essas historias do 
Romanceiro d'Amor, tambem brotavam rente ás duas sepulturas, 
escavadas no êrmo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os 
aromas e as rosas. De sorte que (como notou José Lucio Castanheiro, 
coçando pensativamente o queixo) não resaltava n'esta D. Guiomar 
nada que fosse «só portuguez, só nosso, abrolhando do sólo e da raça!» 
Mas esses amores lamentosos passavam n'um solar de Riba-Côa: os 
nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho, Froylas, Gutierres, 
tinham um delicioso sabor godo: em cada tira resoavam bravamente os 
genuinos: «Bofé!... Mentes pela gorja!... Pagem, o meu murzello!...»: e 
através de toda esta vernaculidade circulava uma sufficiente turba de 
cavallariços com saios alvadios, beguinos sumidos na sombra das 
cugulas, ovençaes sopezando fartas bolsas de couro, uchões 
espostejando nedios lombos de cêrdo... A Novella portanto marcava um 
salutar retrocesso ao sentimento nacional.
--E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonçalinho 
surde com um estylo terso, masculo, de boa côr archaica... D'optima côr 
archaica! Lembra até o Bobo, o Monge de Cister!... A Guiomar, 
realmente, é uma castellã vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no 
villico, mesmo no castellão, já transparecem portuguezes, bons 
portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor! 
Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas 
chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torrão, 
sente bem a raça! 
D. Guiomar encheu tres paginas da *Patria*. N'esse Domingo, para 
celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonçalo Mendes Ramires pagou 
aos camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceia--onde foi 
acclamado, logo depois do frango com ervilhas, quando os moços do 
Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como «o 
nosso Walter Scott!» Elle, de resto, annunciára já com simplicidade um 
Romance em dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude 
feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e 
Alferes-mór de D. Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber 
especial de trajes e alfaias que revelára na D. Guiomar, até pela 
antiguidade da sua linhagem, Gonçalinho parecia gloriosamente votado 
a restaurar em Portugal o Romance Historico. Possuia uma missão--e 
começou logo a passear pela Calçada, pensativo, com o gorro sobre os 
olhos, como quem anda reconstruindo    
    
		
	
	
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