A Illustre Casa de Ramires | Page 9

José Maria Eça de Queiroz
Costa por cinco tost?es. Assada pelo Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abbade de Chandim. Eu conhe?o o vinho. �� d'aqui, da ponta fina.
E Tit��, com dous dedos, delicadamente, sacudio a ponta molle da orelha. Mas Gon?alo, repuxando as pantalonas, hesitava:
--Homem, eu ando com o estomago arrazado... E desde hontem �� noite uma d?r nos rins, ou no figado, ou no ba?o, n?o sei bem, n'uma d'essas entranhas!... At�� hoje, para o jantar, s�� caldo de gallinha e gallinha cosida... Emfim! v��! Mas, �� cautela, recommenda ao Gago que me prepare para mim um franguinho assado... Onde nos encontramos? Na Assembl��a?
O Tit�� despeg��ra logo do tanque, pousando na nuca o chap��o de palha:
--Hoje n?o me gasto pela Assembl��a. Tenho senhora. Das dez para as dez e meia, no Chafariz... Vae tambem o Videirinha com a viola. Viva!... Das dez para as dez e meia! Entendido... E franguinho assado para S. Ex.^a, que se queixa do rim!
E atravessou o pateo, com lentid?o bovina, parando a colher n'uma roseira, junto ao port?o, uma rosa com que florio a quinzena de velludilho c?r d'azeitona.
Immediatamente Gon?alo decidira n?o jantar, certo dos beneficios d'aquelle jejum at�� ��s dez horas, depois de um passeio pelos Bravaes e pelo valle da Riosa. E, antes de entrar no quarto para se vestir, empurrou a porta envidra?ada sobre a escura escada da cozinha, gritou pela Rosa cozinheira. Mas nem a boa velha, nem o Bento por quem tambem berrou furiosamente, responderam, no pesado silencio em que jaziam, como abandonados, esses sombrios fundos de grande lage e de grande abobada que restavam do antigo Palacio, restaurado por Vicente Ramires depois da sua campanha em Castella, incendiado no tempo de El-Rei D. Jos�� I. Ent?o Gon?alo desceu dous degr��os da gasta escadaria de pedra e atirou outro dos longos brados com que atroava a Torre--desde que as campainhas andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a cozinha quando a Rosa acudio. Sahira para o pateo da horta com a filha da Crispola! n?o sentira o Snr. Doutor!...
--Pois estou a berrar ha uma hora! E nem voc�� nem Bento!... �� por que n?o janto. Vou cear a Villa Clara com os amigos.
A Rosa, do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr. Doutor ficava assim em jejum at�� horas da noite?--Filha d'um antigo hortel?o da Torre, crescida na Torre, j�� cozinheira da Torre quando Gon?alo nasc��ra, sempre o trat��ra por ?menino?, e mesmo por ?seu riquinho? at�� que elle partio para Coimbra e come?ou a ser, para ella e para o Bento, o ?Sr. Doutor?.--E o Sr. Doutor, ao menos, devia tomar o caldinho de gallinha, que apur��ra desde o meio dia, cheirava que nem feito no c��o!
Gon?alo, que nunca discordava da Rosa ou do Bento, consentio--e j�� subia, quando reclamou ainda a Rosa para se informar da Crispola, uma desgra?ada viuva que, com um rancho faminto de crian?as, adoecera pela Paschoa de febres perniciosas.
--A Crispola vae melhor, Sr. Doutor. J�� se levanta. Diz a pequena que j�� se levanta... Mas muito derreadinha...
Gon?alo desceu logo outro degr��o, debru?ado na escada, para mergulhar mais confidencialmente n'aquellas tristezas:
--Olhe, oh Rosa, ent?o se a pequena ahi est��, coitada, que leve para casa �� m?e a gallinha que eu tinha para jantar. E o caldo... Que leve a panella! Eu tomo uma chavena de ch�� com biscoitos. E olhe! Mande tambem dez tost?es �� Crispola... Mande dois mil r��is. Escute! Mas n?o lhe mande a gallinha e o dinheiro assim seccamente... Diga que estimo as melhoras, e que l�� passarei por casa para saber. E esse animal do Bento que me suba agua quente!
No quarto, em mangas de camisa, deante do espelho, um immenso espelho rolando entre columnas douradas, estudou a lingua que lhe parecia saburrosa, depois o branco dos olhos, receiando a amarellid?o de bilis solta. E terminou por se contemplar na sua fei??o nova, agora que rap��ra a barba em Lisboa, conservando o bigodinho castanho, frisado e leve, e uma m?sca um pouco longa, que lhe alongava mais a face aquilina e fina, sempre d'uma brancura de nata. O seu desconsolo era o cabello, bem ondeado, mas tenue e fraco, e, apezar de todas as aguas e pomadas, necessitando j�� risca mais elevada, quasi ao meio da testa clara.
--�� infernal! Aos trinta annos estou calvo...
E todavia n?o se despegava do espelho, n'uma contempla??o agradada, recordando mesmo a recommenda??o da tia Louredo, em Lisboa:--?Oh sobrinho! o menino, assim galante e esperto, n?o se enterre na provincia! Lisboa est�� sem rapazes. Precisamos c�� um bom Ramires!?--N?o! n?o se enterraria na provincia, immovel sob a hera e a poeira melancolica das cousas immoveis, como a sua Torre!... Mas vida elegante em Lisboa, entre a sua parentella historica, como a aguentaria com o conto e oitocentos mil reis de renda que lhe
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