A Illustre Casa de Ramires | Page 8

José Maria Eça de Queiroz
um largo copo de vinho, esponjando na testa, nas cordoveias rijas do pesco?o, o suor anciado que o alagava.
Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gon?alo estancou--n?o foi mais que um fio arrastado e turvo. Quando n'essa tarde se accomodou �� banca, para contar a sala d'armas do Pa?o de Santa Ireneia por uma noite de lua--s�� conseguiu converter servilmente n'uma prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem rel��vo que os modernisasse, d��sse magestade senhorial ou bellesa saudosa ��quelles macissos muros onde o luar, deslisando atravez das rexas, salpicava scentelhas pelas pontas das lan?as altas, e pela cimeira dos morri?es... E desde as quatro horas, no calor e silencio do domingo de Junho, labutava, empurrando a penna como lento arado em ch?o pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e molle, ora n'um reboli?o, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinellos de marroquim, ora immovel e abandonado �� esterilidade que o travava, com os olhos esquecidos na Torre, na sua difficillima Torre, negra entre os limoeiros e o azul, toda envolta no piar e esvoa?ar das andorinhas.
Por fim, descor?oado, arrojou a penna que t?o desastrosamente emperr��ra. E fechando na gav��ta, com uma pancada, o volume precioso do *Bardo*:
--Irra! Estou perfeitamente entupido! �� este calor! E depois aquelle animal do Casco, toda a manh?!...
Ainda releu, co?ando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e suja:
--?...Na sala altaneira e larga, onde os largos e pallidos raios da lua...? Larga, largos!... E os pallidos raios, os eternos pallidos raios!... Tambem este maldito castello, t?o complicado!... E este D. Tructesindo, que eu n?o apanho, t?o antigo!... Emfim, um horror!
Atirou, n'um repell?o, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto nos dentes;--e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, n'um tedio immenso da sua obra, d'aquelles confusos e enredados Pa?os de Santa Ireneia, e dos seus av��s, enormes, resoantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos.

II
Bocejando, apertando os cord?es das largas pantalonas de seda que lhe escorregavam da cinta, Gon?alo, que durante todo o dia pregui?��ra, estirado no divan de damasco azul, com uma vaga d?r nos rins, atravessou languidamente o quarto para espreitar, no corredor, o antigo relogio de char?o. Cinco horas e meia!... Para desannuviar, pensou n'uma caminhada pela fresca estrada dos Bravaes. Depois n'uma visita (devida j�� desde a Paschoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito novamente deputado, nas Elei??es Geraes de Abril, pelo circulo de Villa Clara. Mas a jornada �� Feitosa, �� quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a cavallo, desagradavel com aquella teimosa d?r nos rins que o fil��ra na vespera �� noite, depois do ch��, na Assembleia da Villa. E, indeciso, arrastava os passos no corredor, para gritar ao Bento ou �� Rosa que lhe subissem uma limonada, quando, atravez das varandas abertas, resoou um vozeir?o de grosso metal, que gracejando mais se engrossava, rolava pelo pateo, n'uma cadencia cava de malho malhando:
--Oh s? Gon?alo! Oh s? Gon?al?o! Oh s? Gon?alissimo Mendes Ramires!...
Reconheceu logo o Tit��, o Antonio Villalobos, seu vago parente, e seu companheiro de Villa Clara, onde aquelle homenzarr?o excellente, de velha ra?a Alemtejana, se estabelecera sem motivo, s�� por affei??o bucolica �� villa. E havia onze annos que a atulhava com os seus possantes membros, o lento rebombo do seu vozeir?o, e a sua ociosidade espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das lojas, pelos balc?es das tabernas, pelas sachristias a caturrar com os padres, at�� pelo cemiterio a philosophar com o coveiro. Era um irm?o do velho morgado de Cidadelhe (o genealogista), que lhe estabelec��ra uma mesada de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe--e do seu sujo serralho de mo?as do campo, e da obra tenebrosa a que agora se atrell��ra, a Veridica Inquiri??o, uma Inquiri??o sobre as bastardias, crimes e titulos illegitimos das familias fidalgas de Portugal. E Gon?alo, desde estudante, am��ra sempre aquelle Hercules bonacheir?o, que o seduzia pela prodigiosa for?a, a incomparavel potencia em beber todo um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independencia, uma suprema independencia, que, apoiada ao bengal?o terrifico e com as suas oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da Terra nem do C��o.--Logo debru?ado na varanda, gritou:
--Oh Tit��, s��be!... S��be emquanto eu me visto. Tomas um calice de genebra... Vamos depois passear at�� aos Bravaes...
Sentado no rebordo do tanque redondo e sem agua que ornava o pateo, erguendo para o casar?o a sua franca e larga face requeimada, cheia de barba ruiva, o Tit�� movia lentamente como um leque um velho chap��o de palha:
--N?o posso... Ouve l��! Tu queres hoje �� noite cear no Gago, commigo e com o Jo?o Gouveia? Vae tambem o Videirinha e o viol?o. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que eu comprei esta manh? a uma mulher da
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