Panegyrico de Luiz de Camões | Page 3

José Maria Latino Coelho

descobrissem faceis os caminhos, para que a todos fosse commoda a
peregrinação dos tractos lucrativos e das fructuosas mercancias. Pois vá
adiante Portugal e explore as sendas indomesticas d'aquella terra de
profana promissão. Vá adiante circumnavegando briosa e perseverante
as inhospitas margens africanas. Engolfe-se nos mares tempestuosos e
descubra as ilhas viridentes, onde as arvores por centenares de seculos,
na perpetua solidão das suas florestas, haviam ramalhado sem temer a
hacha assoladora do colono, onde os passarinhos, dominando sem rival,
cantavam indolentes os amores, pendurando nas vergonteas os seus
ninhos, sem recear que a mão do homem as viesse descobrir e profanar.

Entrem os portuguezes, esta guarda avançada, estes heroicos batedores
da nova civilisação, entrem na sombria, ignota e espessa escuridão das
terras e das costas africanas, entrem resolutos com as suas proas mal
seguras nas bahias, nas abras, nas aguadas. Vão nas suas aventurosas
singraduras administrando pelo nome portuguez o baptismo da
civilisação ás selvaticas paragens, que descobrem, e assignalando com
padrões a possessão e o dominio. Pairem com os primeiros e mais
felizes navegadores nas aguas revoltosas do cabo Tormentorio, onde a
Africa, semelhante ao ferro agudo e penetrante de uma azagaia
immensa, está ferindo inexoravel o coração do Oceano. Sejam
infatigaveis na aventura, intrepidos no perigo, inabalaveis na ousadia,
heroicos nas provações, indomitos nos contrastes da fortuna. Avancem
de cada vez mais um estadio na róta, que traçaram. Abram nos mares
desconhecidos a propria estrada, que vão descortinando e percorrendo.
Operem maravilhas de sciencia cosmographica e prodigios de estoica
paciência e milagres de valor e galhardia. Deixem atraz o cabo
temeroso e em fragillimos baixeis vão singrando aventureiros o Oceano
Indico. Aportem finalmente á celebrada terra oriental, e a principio
hospedes e forasteiros, venham a ser em breve termo os altivos
dominadores d'aquelles florentissimos imperios, agora avassallados e
sujeitos ao jugo portuguez. D'ali bracejem as extensas vergonteas do
descobrimento e da conquista até ás mais apartadas e mysteriosas
regiões. Entre a Europa escudada com o nome de Portugal na China e
no Japão. Vá lustrando nos portuguezes galeões os mais remotos
archipelagos. Deixe memorada na gloria dos seus feitos e nos nomes
portuguezes dos logares a passagem triumphal d'este povo pequeno na
extensão, gigante nos seus brios. Partindo do ultimo Occidente, de
exiguo e infantil feito gigante, confranja nos seus braços de ferro o
globo inteiro. Dissipe com o seu arrojo incontrastavel as neblinas, que
escondiam o Oceano, e rompa animoso e irresistivel o veo mysterioso,
que encobria a face da terra. Aponte ali aos que na sua assombrosa
variedade a desconheciam, as divisões e as fronteiras das terras e das
aguas, como um amoravel preceptor, arrancando o envoltorio, que tinha
recatado um globo geographico, ensina ao alumno pueril e curioso, as
linhas que delimitam os continentes e os mares. Diga finalmente á
Europa entre assombrada e invejosa: «A terra, que tu sonhaste, era a
terra fabulosa, a terra debuxada nas descripções phantasiosas dos

antigos e nos mappas mentirosos da edade média. A terra, que eu te dou,
é a terra qual outr'ora saíu das mãos da natureza para o homem
primitivo, qual sae agora das minhas mãos para o homem civilisado. É
a terra, de que os antigos apenas conheceram uma nesga, de que
Alexandre, nas suas tão famigeradas expedições, soube apenas tanto
como a mais tarda e preguiçosa das minhas galés, talvez menos que o
mais frouxo dos meus aventureiros. A terra, que vós conheceis, é a terra
de Ptolomeu e de Strabão, a terra dos que não a viram, mas sonharam.
Esta, que vos dou, é a terra de Vasco da Gama, de Pedro Alvares
Cabral, de Fernão de Magalhães, de João da Nova, a terra, de que para
vós tomamos posse, como os primeiros que em todas as direcções a
soubemos percorrer e navegar.»
A Europa, ouviu, estremeceu, levantou-se e invejou. As páreas copiosas
dos nossos descobrimentos, os despojos opimos das nossas expedições,
os fructos sasonados das nossas conquistas, tudo lhe deitámos
generosos no regaço. Para nós guardámos o que se não pode alienar: as
glorias e os laureis. Démos-lhe tudo o que havia de terrenal e de
mundano. Recatámos como thesouro inestimavel o que as nossas
empresas memoraveis tiveram de espiritual, quasi divino. Á
semelhança do honrado e brioso cavalleiro, que, com mais cicatrizes
que veneras, no outono da sua existencia gloriosa, pendurando na
panoplia a espada reluzente e o murrião abolado nas requestas
sanguinosas, deixa que tudo lhe arrebate a má fortuna, mas não cede ou
vende a extranhos as insignias memoraveis, esculpidas como brazão e
stemma gentilicio na face do seu broquel.
Quando as glorias portuguezas são chegadas á brilhante culminação,
quando principia a resfriar o ardor primevo das empresas memoraveis,
quando é necessario colher na phase momentanea do seu maximo
esplendor a heroicidade portugueza, e como que photographal-a, ainda
viva, recente,
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