Panegyrico de Luiz de Camões | Page 2

José Maria Latino Coelho
triumphal
das esplendidas victorias. Abristes as portas do Oceano, e dissestes ás
demais nações da Europa: «Despertae da somnolencia medieva, e
entrae após os meus navegadores.» A velha christandade phantasiava o
mundo nos fabulados portulanos. E vós, estendendo aos vossos pés a
terra inteira, como se fôra ainda pequeno mappa, estudastes a
geographia, sulcando as linhas nas aguas com as vossas quilhas
venturosas, entalhando-as na terra com o ferro vencedor.
Isto diz, mas em carmes inspirados e em divinas modulações, o
immortal cantor dos feitos patrios. É a voz da gloria, que resôa
perpetuamente, vibrada pela tuba do maximo poeta e do mais ardente e
devotado portuguez. São os Lusiadas. É o Camões.
Quando pronuncía um portuguez o nome do Camões, a admiração e o
orgulho de contar como seu natural o grande epico, é o maximo elogio.
E n'esta occasião, em que festivamente celebra Portugal ao seu poeta,
quando o povo, estreitando os vinculos da patria em volta do seu mais
illustre e benemerito cantor, está pagando em publica e solemne

apotheose, a homenagem do seu culto ao altissimo engenho portuguez,
parecera temeridade, quasi diriamos sacrilegio, o buscar encarecer a
gloria do Camões. Seria como accender pallidas lucernas para que
appareça fulgindo mais esplendido o sol meridiano. E, senhores, se
levanto n'este momento a minha voz, perdida e abafada no côro
unisono das acclamações universaes, é porque assim o ordenou a
Academia, mais zelosa na veneração ao épico immortal do que feliz na
eleição do orador.
Não espereis da minha voz um panegyrico, porque só farei em breves
termos a commemoração de um grande nome. No meio do fervoroso
enthusiasmo, com que a cidade de Lisboa, e as demais povoações de
Portugal, solvem após tres seculos na escassa e tardia moeda que lhe é
dado dispender, o preço das altiloquas estrophes, quando os arcos
triumphaes, os prestitos solemnes, os hymnos melodiosos, os bellicos
tropheos, as bandeiras multicores, as deslumbrantes illuminações
annunciam publicamente que revive, como o symbolo da patria, o
nome do seu cantor, a nação, como que expiando nobremente a culposa
indifferença das passadas gerações, entalha n'estes honrosos
monumentos o nome de quem teceu de luz a heroica narração dos feitos
patrios. A Academia, associando-se a esta liturgia nacional em honra
do poeta, poz-me na mão o cinzel, e prescreveu-me que n'um recanto
d'este marmore, onde Portugal insculpe agora a sua e a gloria do cantor,
eu deixe tambem gravado o nome do Camões.
Fazer o elogio do Camões é tecer o panegyrico da patria. E é sempre
grato a um portuguez o encomiar a Portugal.
Nós temos, os portuguezes, um singular e raro privilegio. Somos nós
entre os modernos povos europeus o que tem um poema
verdadeiramente nacional, um poema, cujos cantos são as façanhas da
nação enaltecidas pela mais florida e opulenta phantasia, modeladas nas
fórmas da epopéa. Celebram outras gentes a fecundos e altissimos
engenhos, cujos reflexos luminosos, transcendendo os ambitos da patria,
estão doirando e ennobrecendo a litteratura universal. Mas nenhum
povo tem como o portuguez um d'estes felicissimos espiritos, que são
ao mesmo passo o genio da nação, e o genio da poesia, e em cujas

obras respire ao mesmo tempo a patria e a humanidade, a gloria
privativa de um só povo, e o destino commum de uma inteira
civilisação. O Dante é immortal, mas o seu poema é inspirado pelo
mysticismo e a vingança. Immortal é o Tasso, mas a sua epopéa é a
novella cavalleirosa, que se enreda e desenlaça em redor dos sacros
muros da triste Jerusalem. Immortal é Shakespeare, mas a sua musa,
que penetra e descobre as mais occultas fibras do humano coração, é
mais cosmopolita do que fadada a conglobar a gloria dos bretões.
Immortal é Cervantes, mas a figura entre sublime e comica do seu
heroe, é mais do que o symbolo da Hespanha, é a personificação da
humanidade, como abstrusa e paradoxal composição de loucura e
heroicidade. Immortal é o Camões, mas é immortal para os seus,
immortal para os extranhos. Para os seus, porque em versos admiraveis
divulgou as empresas, em que foram protagonistas. Immortal para os
extranhos, porque os feitos, que reconta, são o berço onde incubou
fecunda a novissima civilisação.
Manda a Europa, ainda então adormecida para as longas e trabalhosas
expedições, manda a Portugal que marche na vanguarda. Eram
tenebrosos, impervios, procellosos os mares, onde nenhum baixel se
tinha aventurado. Entrevia-se o Oriente como a quasi fabulosa região,
d'onde vinham magnificadas pela creadora phantasia os encantos e as
maravilhas. Era a terra das ardentes especiarias e das drogas
perfumadas, a fecunda matriz dos diamantes e das perolas. Os seus
thesouros aguçavam o desejo ás gentes occidentaes. Era como o paraiso
da cubiça para esta velha Europa, já cansada da sua gleba mais esteril
que os ridentes vergeis orientaes. Todos anhelavam porque se
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