Lendas e Narrativas | Page 2

Alexandre Herculano
n?o ��a nada.
Por annos a dama e o cavalleiro viveram em boa paz e uni?o. Dous argumentos vivos havia d'isso: D. Inigo Guerra e D. Sol, enlevo ambos de seu pae.
Um dia pela tarde D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo �� casa onde comia, para se regalar de ver a excellente pr��a que havia preado.
Seu filho assentou-se ao p�� delle: ao p�� da m?e D. Sol; e come?aram alegremente seu jantar.
"Boa montaria, D. Diogo,"--dizia sua mulher.--"Foi uma boa e limpa ca?ada."
"Pelas tripas de Judas!"--respondeu o bar?o.--"Que ha bem cinco annos n?o colho urso ou porco montez que este valha!"
Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe �� saude de todos os ricos homens fragueiros e monteadores.
E a comer e a beber durou at�� a noite o jantar.
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Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um al?o a que muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono, e at�� com os servos de casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais n?o havia dizer, e della n?o menos presada.
O al?o estava gravemente assentado no ch?o defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semi-cerrados, como quem dormitava.
A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pello liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado.
O bar?o, depois da saude urbi et orbi feita aos monteiros, esgotava um kirie comprido de saudes particulares, e a cada nome uma ta?a.
Estava como cumpria a um rico-homem illustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo sen?o dormir, beber, comer e ca?ar.
E o al?o cabeceava como um abbade velho em seu c?ro, e a podenga saltava.
O senhor de Biscaia pegou ent?o de um peda?o de osso com sua carne e medula, e atirando-a ao al?o gritou-lhe:--"Silvano, toma l�� tu, que ��s fragueiro: leve o diabo a podenga, que n?o sabe sen?o correr e retou?ar."
O canzarr?o abriu os olhos, rosnou, poz a pata sobre o osso, e abrindo a b?ca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado.
Mas logo soltou um uivo, e cahiu, perneando meio-morto: a podenga de um pulo lhe salt��ra �� garganta, e o al?o agonisava.
"Pelas barbas de D. From, meu bisav?!"--exclamou D. Diogo, pondo-se em p�� tremulo de colera e de vinho.--"A perra maldicta matou-me o melhor al?o da matilha; mas juro que hei-de escorcha-la."
E virando com o p�� o c?o moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que espirava.
"A la f�� que nunca tal vi! Virgem bemdicta! Aqui anda cousa de Belzebuth."--E dizendo e fazendo, benzia-se e persignava-se.
"Ui!"--gritou sua mulher como se a houveram queimado. O bar?o olhou para ella: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a b?ca torcida e os cabellos eri?ados:
E ��a-se alevantando, alevantando ao ar com a pobre D. Sol sobra?ada debaixo do bra?o esquerdo: o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho D. Inigo de Biscaia.
E aquelle bra?o crescia alongando-se para o mesquinho, que de medo n?o ousava bolir nem falar.
E a m?o da dama era preta e luzidia como o pello da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bom meio palmo, e recurvado em garras.
"Jesus, sancto nome de Deus!"--bradou D. Diogo, a quem o terror dissip��ra as fuma?as do vinho. E travando de seu filho com a esquerda, fez no ar com a direita uma e outra vez o signal da cruz.
E sua mulher deu um grande gemido, e largou o bra?o de Inigo Guerra, que j�� tinha seguro, e continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.
Desde esse dia n?o houve saber mais nem da m?e nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguem no castello lhe tornou a p?r a vista em cima.
D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborr��do, porque j�� n?o se atrevia a montear. Lembrou-se, por��m, um dia de espairecer sua tristura, e em vez de ir �� ca?a dos cerdos, ursos e zevras, sair �� ca?a de mouros.
Mandou, pois, levantar o pend?o, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arnezes. Entregou a Inigo Guerra, que j�� era mancebo e cavalleiro, o governo de seus castellos, e partiu com lustrosa mesnada de homens d'armas para a hoste d'el rei Ramiro, que ��a em arrancada contra a mourisma de Hespanha.
Por muito tempo n?o houve delle, em Biscaia, nem novas nem mensageiros.
* * * * *

TROVA SEGUNDA.
1
Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava �� mesa, mas n?o podia ceiar, que grandes desmaios lhe vinham ao cora??o. Um pagem muito mimoso e privado, que em p�� diante delle esperava seu mandar, disse ent?o para D. Inigo:--"Senhor, porque n?o comeis?"
"Que
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