A Lenda da Meia-Noite | Page 3

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
de cabellos castanhos claros e
olhos azues, de um azul tão vivo que produziam ás vezes a sensação de
olhos negros, como se fossem aquelles reflexos azulados da aza negra
do corvo; tomo o partido de Isaura. Os senhores estão fallando ahi
como creaturas vulgares incapazes de sentirem profundamente as
grandes commoções. Para as almas privilegiadas os grandes prazeres da
imaginação muitas vezes são tambem o martyrio. São as Ophelias, as
Marias de Noronha, as creaturas ideaes cujos corpos são apenas, como
o da irmã do bispo Myriel nos Misérables, de Victor Hugo, pretextos
para conservarem no mundo almas de anjos.
--E cuidas que não ha na terra esses entes, cujas expressões mais
sublimes foram encontradas por tres grandes poetas que acabas de citar,
Garrett, Shakespeare e Victor Hugo? acudiu vivamente o enthusiasta de
Isaura, que sentira o leve epigramma, que o seu idolo não

comprehendêra.
--Não cuido tal, Henrique. A prova de que os ha é que Isaura é um
d'esses entes.
--Por quem és, Leonor... acudiu Isaura com uns certos ares de modestia,
que ainda mais desesperaram o seu apaixonado.
--É assim, tornou Leonor. Tu, Isaura, sentes que se partiriam as cordas
da tua alma, se quizesses lêr á noite n'um quarto de uma velha casa
provinciana uma historia de phantasmas. Morrias se te achasses sósinha
á noite n'uma sala de lugubre aspecto. Porque? Porque tens a
imaginação exaltada, a sensibilidade nervosa das Ophelias e das Marias
de Noronha!
--E não admirava, acudiu Henrique Osorio que assim se chamava o
moço do Fundão, não admirava, sr.^a D. Isaura, que v. ex.^a tivesse
medo de estar sósinha n'um castello de Anna Radcliffe. Nem todas
podem ter a imaginação calma, o prosaico bom senso, a fria intrepidez
de Leonor. A marqueza da Lusacia, de que falla Victor Hugo n'um dos
seus poemas, preferia perder a soberania do seu marquezado a ir passar
a noite sósinha, como o ordenava o costume tradicional, no castello de
seus avós...
--Logo encontrou quem a acompanhasse, interrompeu Leonor
ironicamente.
--E não seria só ella.
--Isaura, ouviste? acudiu Leonor rindo com tal ou qual amargura, se
quizeres passar alguma noite n'um castello legendario, como a
marqueza da Lusacia, já tens trovador que te acompanhe, ao bater da
meia-noite, e que te cante:
Si tu veux, faisons un rêve, Montons sur deux palefrois, Tu m'emmènes,
je t'enlève. L'oiseau chante dans les bois.
Isaura sorriu-se sem comprehender bem a lucta que em torno d'ella se

travava; Henrique Osorio calou-se. Leonor, um pouco arrependida de
ter mostrado um tal ou qual azedume, voltou-se para sua mãe que
resonava recostada na sua poltrona, e, chamando-a, disse-lhe algumas
palavras em voz baixa, convidando-a a que lembrasse a seu pae que
eram horas de pôr um termo ao boston. O doutor levára a mão aos
labios para cumprimir um bocejo, e Lucio Valença, sorrindo-se,
contemplava a esplendida formosura de Isaura, e êsses olhos que Deus
fizera tão formosos, e que não reflectiam comtudo senão as
preoccupações pueris da mulher da moda, e da lisbonense frivola.
No meio d'este silencio ouviu-se o vento bramir com mais força, para
depois gemer com mais tristeza, parecendo que se estabelecia um
dialogo entre os espiritos atmosphericos, e que aos rugidos
ameaçadores de um demonio respondiam as queixas plangentes de um
ente fraco e debil.
De subito ouviu-se ao longe, ao longe, vibrar uma badalada no sino de
S. Martinho de Alpedrinha.
O vento soprava d'aquelle lado, e trazia nas suas azas as lugubres
vibrações do bronze.
Ouviu-se em profundo silencio uma, duas, tres... doze badaladas.
--Meia-noite! disse naturalmente o doutor, quebrando o silencio em que
todos estavam, porque todos tinham estado contando as horas.
Mas a voz do doutor tambem tomára involuntariamente como que uma
sinistra entoação.
D. Isaura soltou um grito.
--Jesus! disse ella.
--Que tem, minha senhora? perguntou Henrique sollicito e afflicto.
--Meu Deus! exclamou Isaura, é que me aterraram com as suas loucas
historias, é que me puzeram n'um estado incrivel de sobre-excitação

nervosa. Meia-noite! vê? Meia-noite é a hora dos phantasmas, é a hora
das apparições! E esta sala é tão lugubre, e este silencio é tão agoireiro!
--Minha senhora, exclamou o doutor Macedo alegremente, v. ex.^a
suppõe por acaso que nós sejamos phantasmas, e que estejamos quasi a
dissipar-nos em fumo como quaesquer entes mal-creados do mundo
sobrenatural? V. ex.^a está no meio d'um batalhão de gente viva capaz
de affrontar dois subterraneos de Anna Radcliffe, tres conventos de
Lewis, reforçados ainda pelos mil e um phantasmas de Alexandre
Dumas.
--Oh! tornou Isaura toda tremula, mas é que a meia-noite soou de um
modo tão lugubre... E nós a esta hora ainda a pé...
--V. ex.^a deita-se mais cedo em Lisboa? perguntou o doutor.
--Não, mas...
--Mas é que a meia-noite só aterra os que lhe dão ímportancia. É uma
hora covarde e manhosa,
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