A Lenda da Meia-Noite | Page 2

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
e os convidados, havia uma profusa illuminação.
O resto da sala ficava perdido na sombra. De vez em quando surgiam
d'esse fundo escuro os criados que vinham fazer algum serviço. O
toque da campainha não parecia que os chamava, parecia que os
evocava. Saíam de subito da penumbra, como se surgissem do chão. O
aspecto da casa era, portanto, o mais legendario que podia imaginar-se.
A conversação prolongára-se ainda depois do chá! Um medico, que
residia em Alpedrinha, para onde viera, não exercer a clinica, mas tratar
da sua propria saude, arruinada, em proveito da saude dos outros,
homem de espirito fino e amavel, fôra quem sustentára principalmente
a palestra, ajudado por um sr. Lucio Valença, escriptor de certa aura, e
caçador intrepido, e por uma filha dos viscondes, gentil menina,
sympathica, alegre e desembaraçada, que, apesar de ter vivido sempre
em Castello-Branco, e de ter ido apenas uma ou duas vezes a Lisboa,
não tinha nenhum dos acanhamentos tradicionaes das provincianas de
romance.
A pouco e pouco, porém, esmorecera a conversação: pausas cada vez
mais amiudadas cortavam a palestra, e o medico já tirára o relogio para
vêr se não íam sendo horas de retirada. Mas o visconde da Fragosa
estava agarrado, com o commendador Madureira, e alguns visinhos de
campo, a um impertinente boston, e em vista d'isso ninguem ousava ser
o primeiro a tocar a recolher.
N'estes silencios ouvia-se distinctamente o rugir do vento na serra, e os
seus gemidos e silvos nos corredores da casa.
--Meu Deus! que tristeza de noite! disse de subito uma joven senhora,
de notavel formosura, extraordinariamente pallida, mas com umas
opulentas tranças negras, e uns olhos negros tambem, grandes, rasgados,
que lhe illuminavam com estranho fulgor o rosto de alabastro. O vento

geme com uns sons tão lugubres, que nos parece ouvir as queixas dos
phantasmas. É uma noite de lenda allemã!
--Para isso, acudiu o doutor Macedo, falta a chuva, a trovoada, a neve e
muitos outros accessorios germanicos. O vento só não basta.
--V. ex.^a gosta de lendas, sr.^a D. Isaura? perguntou inclinando-se
para ella um elegante moço do Fundão, em quem pareciam ter
produzido uma impressão profunda os olhos negros e a romantica
pallidez da filha do commendador Madureira.
--Se gosto de lendas! respondeu a pallida menina. Ah! de certo,
adoro-as, mas gosto de as lêr em Lisboa, no meu gabinete e á luz do
sol.
--Sem mise-en-scene não prestam, observou com toda a gravidade o
doutor Macedo.
--A que chama mise-en-scene, doutor? perguntou Isaura.
--O Lucio que lh'o explique, minha senhora; não quero invadir os seus
dominios.
--Oh! meu Deus, acudiu o escriptor, não é difficil de adivinhar. O
doutor entende que as lendas devem ser lidas e apreciadas á noite, no
meio do silencio geral, quando se está sósinho, n'um velho castello de
Anna Radcliffe, cheio de alçapões e de subterraneos, quando o vento
geme lugubremente nos corredores, e faz oscillar a luz da vela que
illumina a nossa solitaria vigilia. Creio que o doutor, acudiu Lucio
voltando-se rindo para elle, dispensa que a vela esteja n'um craneo, em
vez de estar n'um castiçal, e que haja um cemiterio por baixo da janella.
--Dispenso... dispenso... acudiu o doutor com a mesma imperturbavel
gravidade, quero dizer... não julgo indispensaveis esses accessorios,
mas não posso negar que augmentavam de um modo notabilissimo o
effeito phantastico da narrativa legendaria.
--Meu Deus! exclamou a pallida Isaura. Fazem-me morrer de susto com

essas historias pavorosas. Hoje com toda a certeza não durmo. Que idéa!
É necessario que não tenham a minima dóse de sensibilidade para
assim estarem zombeteando a respeito de coisas, que me produziriam
uma impressão tamanha, que os meus nervos de certo não resistiriam.
Estou já toda tremula!
--Mas, minha senhora, exclamou o doutor Macedo, as lendas são como
os ananazes. Ha os nascidos ao ar livre, na sua terra propria, e ha-os
desabrochados artificialmente com o calor da estufa. N'um velho solar
provinciano, ao som lugubre do vento nos corredores, n'uma noite de
inverno sulcada de relampagos, nasce a lenda tão naturalmente como o
ananaz no Brazil. N'uma sala de Lisboa, forrada de espelhos, ornada de
macios sophás, entre os rumores meridianos da rua, a luz clara e alegre
do sol, a lenda não póde ter mais sabor do que um ananaz de estufa.
--Jesus, meu Deus, exclamou D. Isaura, percebo isso perfeitamente, e
bem sei que o phantastico só póde produzir toda a impressão de que é
susceptivel no scenario que o doutor descreve: mas é que levado a esse
ponto, o phantastico produziria no meu espirito um funesto effeito.
Matava-me ou enlouquecia-me! Ah! tornou ella, eu adoro o ideal, mas
o ideal póde tambem partir as cordas da minha alma.
--Tomo o partido de Isaura, disse não sem alguma ironia a filha dos
viscondes de Fragosa, linda menina
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