Sol de Inverno | Page 2

António Feijó
foi a perda da sua
adorada mulher, levada pela morte em setembro de 1915, ainda em
plena mocidade e em todo o encanto da sua grande elegancia e
brilhante formosura.
O offerecimento do _Sol de Inverno_ não é feito á sua memoria, mas a
ella ainda viva e presente no lar domestico. Nas cartas que d'elle recebi
no curto periodo da sua viuvez,--uns vinte mezes,--referia-se aos dois
livros como a uma obra feita. Depois do golpe, de cuja incuravel ferida
lhe havia de resultar, mais tarde, a morte, não appareceram, nos seus
papeis,--que eu saiba,--vestigios d'um regresso á actividade litteraria.
D'isso me fallava ás vezes, quando me escrevia, mas como d'uma
intenção, não como d'um facto.
_Sol de Inverno_ e _Novas Bailatas_ devem conter, portanto, as
derradeiras producções poeticas de Antonio Feijó. São o fecho da sua
obra e são realmente um remate superior, em que o seu talento e a sua
arte se ostentam em plena maturação e plena mestria. Não lhe foi dado
a elle assistir ao seu maximo triumpho litterario, á publicidade d'aquelle
dos seus livros, o _Sol de Inverno_, que o qualifica, definitivamente e
sem favor, um grande poeta.
A esse triumpho tambem os seus amigos não assistem com aquelle
jubilo que experimentariam se lhe pudessem manifestar a sua
admiração, se pudessem acclamal-o a elle em pessoa, não apenas á sua
memoria e ao seu nome, agora gloriosamente consagrados.

Por mim, fal-o-ei n'esta evocação da saudade, que é o conforto da alma
no declinar da vida e tem o dom maravilhoso de resuscitar

espiritualmente os mortos.
Se julgo poder dominar as suggestões da amizade ao tratar da obra
d'um tão grande amigo, não me é, por outro lado, possivel fallar d'elle
sem que, a cada passo, esse affecto fraterno não transpareça nas minhas
palavras, sem que tenha de referir-me ás nossas intimas relações,
mettendo o leitor na confidencia de velhas lembranças pessoaes, que
para elle podem, comtudo, ter interesse, por dizerem respeito a uma tão
notavel individualidade.
II
Por fins de outubro de 1877,--pouco falta para a conta d'um longo meio
seculo!--em Coimbra, um bando alegre de _novatos_ de Direito, no
intervallo de duas aulas, subia ruidosamente a ingreme escada da torre
da Universidade, e, lá do alto, n'um largo desafogo, estendia a vista por
esse incomparavel panorama do valle do Mondego, entre cujo
legendario quadro lhes ia correr todo um lustro de intensa vida mental,
de tremendas controversias de ideias, de extases poeticos, de sonhos de
juventude, de esperanças, de chimeras,--essa divina florescencia do
espirito, que marca, na nossa existencia, o seu momento superiormente
bello e culminantemente feliz.
Eu era d'esse grupo. Mal nos conheciamos de vista uns aos outros:
havia apenas coisa d'uma semana que, pela primeira vez, nos
juntaramos nos bancos da nossa aula. Vinhamos de todas as provincias
de Portugal: como acontecia sempre nos grandes cursos de Direito,
havia, entre nós, minhotos, transmontanos, beirões, extremenhos,
alemtejanos, algarvios, ilheus,--cada um com o seu typo ethnico, o seu
sotaque regional. Ao acaso, misturavamo-nos, entabolavamos
conversas superficiaes, trocavamos impressões rapidas, no
deslumbramento d'essa visão de belleza que se estendia, deante dos
nossos olhos, da montanha á planicie, da mancha azulada e longinqua
da serra da Louzã á ridente campina do Mondego, tocada já pelos tons
d'oiro do outomno.

N'essa casual communicabilidade, achei-me a conversar com um rapaz,
ao lado do qual havia feito a esfalfante escalada da torre. Era um bello
moço, de hombros largos e um tanto cheio de corpo, cabello
ligeiramente aloirado, pelle clara e uns olhos castanhos sorridentes e
um nada maliciosos, atravez dos quaes como que se lhe via a clara
intelligencia e o vivo espirito.
Dissemos meia duzia de coisas vagas sobre a paisagem, sobre Coimbra,
sobre os interessantes aspectos da velha Universidade, vista assim do
alto, no conjuncto irregular dos seus corpos assymetricos. Facilmente
nos descobrimos inclinações litterarias, citámos livros, fallámos de
escriptores, de poetas... E, d'esse encontro fortuito, d'esse momento
inolvidavel d'uma forte emoção de esthesia, partilhada por duas almas
apenas sahidas da adolescencia, nasceu, entre mim e Antonio Feijó,
uma amizade de irmãos, uma camaradagem de espirito, uma estreita
communhão moral, que, sem sombras, nem collapsos, mesmo através
de longos afastamentos, durou quarenta annos e só a Morte,-- só ella, a
implacavel ceifeira das minhas grandes amizades!--logrou cortar...
Pouco depois, já no decorrer do primeiro anno do seu curso, Feijó
revelava-se um poeta á sua geração academica.
Lembro-me perfeitamente dos primeiros versos que, d'elle, li.
Appareceram na _Sebenta_ da cadeira de Direito Romano. As
_Sebentas_, por esse tempo, juntavam, ás vezes, á utilidade das suas
funcções pedagogicas, o innocente deleite d'uma ou d'outra
_perpetração_ litteraria, em que ensaiavam as azas aquelles, do Curso,
a quem a Musa já provocava e seduzia...
Um condiscipulo nosso, o bom João Martins, de Redondo, havia, n'uma
lição, estadeado uma vasta sabedoria, citando Ortolan com
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 32
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.