Scenas Contemporaneas | Page 2

Camilo Castelo Branco
cada grupo, com dous c?es, seguiu as p��gadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam �� pancada, porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos c?es; se esperavam eram apanhados �� m?o. Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o fur?o, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os c?es, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos nossos p��s.
Andamos assim uma hora, t?o entretidos, t?o esquecidos do mundo, que nunca t?o distrahida hora eu tive na minha vida, a n?o ser aquellas em que durmo, e sonho que hei-de tornar ��quelles meus dias de candura, depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que vestiriam, por innocentes, como Ad?o e Eva, se a serpente lhes n?o dissesse que andavam indecentes.
Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de neve.
O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque (dizia elle) d'aqui a minutos as nossas p��gadas estar?o cobertas, e n?o saberemos caminhar para o nascente nem para o poente.
--Eu, por ora, n?o vou--lhe disse eu.
--Porque?
--Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola em ondas aos nossos p��s, e sobre a nossa cabe?a, afigura-se-me o fumo do grande incendio no juizo final! Olha... n?o te parece que o vento espalha j�� as cinzas d'uma grande cidade! N?o v��s Sodoma l�� em baixo vomitando columnas de fumo?...
--Eu n?o vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas vis?es... vamos embora...
--Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, d�� um tiro, que eu l�� vou ter. Estou bem aqui; n?o me mudo por cousa nenhuma.
--At�� logo.
IV.
E eu continuei a v��r as minhas vis?es.
Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em eleva??es d'alma para cousas de imagina??o, que n?o era esta fria imagina??o, que tenho hoje.
Absorvido no meu quadro do juizo final, que s�� uma phantasia abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e n?o fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles homens, prosa vil, que n?o tiravam partido do grandioso panorama, que a m?o liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos.
N?o sabeis que o nevoeiro embriaga?
�� uma verdade. A cabe?a enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma sensa??o desagradavel, semelhante �� do giro penoso em que a indigest?o do vinho vos traz a cabe?a vertiginosa.
Foi o que eu senti, quando me furtei ��s minhas contempla??es improprias do tempo e do lugar.
Ergui-me, e n?o sabia j�� designar a direc??o que lev��ra o meu companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a humidade inutilis��ra a escorva. Os c?es, que poderiam ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. N?o desanimei.
Tal direc??o pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro deixava-me v��r apenas o espa?o que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoa??o. Conheci que estava perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de vida! Ent?o, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum lobo.
E, de mais a mais, eu tinha fome.
Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um peda?o de br?a para o meu fur?o. Reparti-o entre n��s. O animalsinho comeu com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar f��ra um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve.
Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo!
Continuei o meu caminho, sem esperan?as de encontrar pousada.
Escureceu.
Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabe?a uma cabe?a academica.
Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoa??o, por isso que os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de ald��a proxima. N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que tocava ��s ?Ave-Marias.?
Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. Orei com a devo??o dos dezoito annos. N?o vos digo mais nada a este respeito, porque me n?o entenderieis. Sois excellentes pessoas para devorar um romance em dez volumes; mas n?o lerieis, sem abrir tres vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do c��o, que o poeta n?o deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao alcance de todas as capacidades.
Eu creio que entre v��s ha
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