seis. Dividimo-nos em tres 
grupos, e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de nos 
perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso 
esconder-nos os cabeços das serras, unicas balizas que nos serviam de 
guia. 
Assim combinados, cada grupo, com dous cães, seguiu as pégadas dos 
coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam á 
pancada, porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, 
eram logo mordidos pelos cães; se esperavam eram apanhados á mão. 
Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, 
formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A
estes perseguia-os o furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, 
e os cães, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, 
sacudiam-nos com o rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos 
nossos pés. 
Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão esquecidos do mundo, 
que nunca tão distrahida hora eu tive na minha vida, a não ser aquellas 
em que durmo, e sonho que hei-de tornar áquelles meus dias de candura, 
depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que 
vestiriam, por innocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes não 
dissesse que andavam indecentes. 
Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de 
neve. 
O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque 
(dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pégadas estarão cobertas, e não 
saberemos caminhar para o nascente nem para o poente. 
--Eu, por ora, não vou--lhe disse eu. 
--Porque? 
--Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta 
chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que 
rola em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça, afigura-se-me o 
fumo do grande incendio no juizo final! Olha... não te parece que o 
vento espalha já as cinzas d'uma grande cidade! Não vês Sodoma lá em 
baixo vomitando columnas de fumo?... 
--Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas visões... vamos 
embora... 
--Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá um tiro, 
que eu lá vou ter. Estou bem aqui; não me mudo por cousa nenhuma. 
--Até logo.
IV. 
E eu continuei a vêr as minhas visões. 
Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevações 
d'alma para cousas de imaginação, que não era esta fria imaginação, 
que tenho hoje. 
Absorvido no meu quadro do juizo final, que só uma phantasia 
abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, 
e não fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles 
homens, prosa vil, que não tiravam partido do grandioso panorama, que 
a mão liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos. 
Não sabeis que o nevoeiro embriaga? 
É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que 
vos faz perder o rumo. Sentis uma sensação desagradavel, semelhante á 
do giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a cabeça 
vertiginosa. 
Foi o que eu senti, quando me furtei ás minhas contemplações 
improprias do tempo e do lugar. 
Ergui-me, e não sabia já designar a direcção que levára o meu 
companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha 
clavina, mas a humidade inutilisára a escorva. Os cães, que poderiam 
ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não 
desanimei. 
Tal direcção pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O 
nevoeiro deixava-me vêr apenas o espaço que pisava. Atravessei a 
lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos 
algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, 
quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoação. Conheci que 
estava perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um 
symptoma de vida! Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha 
sepultura, sem solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no
estomago d'algum lobo. 
E, de mais a mais, eu tinha fome. 
Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedaço 
de brôa para o meu furão. Reparti-o entre nós. O animalsinho comeu 
com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar 
coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fóra um gato bravo, 
que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve. 
Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo! 
Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar pousada. 
Escureceu. 
Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre 
cabeça uma cabeça academica. 
Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em 
provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoação, por isso que 
os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de aldêa proxima. 
N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que 
tocava ás «Ave-Marias.» 
Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. 
Orei com a devoção dos dezoito annos. Não    
    
		
	
	
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