barriga 
e caíram-te os dentes!
As unhas foi meu pai quem tas cortou de vez...
Já nem és cão... és porco; e inda em porco és má rês!
E lembrar-me 
eu de o ver, canzarrão duro e bruto,
O ventre magro, o olhar em 
sangue, o pêlo hirsuto,
Capaz de trincar ferro e mastigar cascalho!...
E ei-lo agora: poltrão! ventrudo-mór! bandalho! 
Iago redobra de festas. O rei dá-lhe um pontapé. 
O bandalho! o bandalho!...
E êste Judas esperto,
Êste Judas, filho de lôba e cão incerto!...
Um 
chacal remeloso e sarnento e pelado,
Todo carcunda, esguio e vêsgo, 
a olhar de lado!...
E acredita, o pandilha sorna, o safardana,
Sempre 
a beijar-me os pés, sempre a tossir de esgana,
Que me ilude!... 
Cachorro!... Ora diz lá, meu traste:
Por quanto hás-de vender El-rei? 
já calculaste?...
E um Veneno, que é tão pequeno e que é tão mau!
Fraldiqueiro e feroz, pulgasita e lacrau!
Com ganas de trincar a 
humanidade inteira,
Vai trincando pasteis e barrigas de freira... 
Erguendo-se: 
E são três cães, três cães! Iago, Judas, Veneno,
Um odre imundo, um 
chacal torto e um rato obsceno,
O meu amparo! Que vergonha!... Ao 
que eu cheguei!...
Três podengos de esquina a tutelar um rei!
Mas, 
que demónio! sou injusto... a verdade, a verdade
É que guardam o 
prédio e fazem-me a vontade...
Por amor à ração e não amor ao dono?
Inda bem.... inda bem... tem de salvar o trono,
Se quiserem jantar... 
perdida a monarquia,
Adeus o regabofe e adeus a conesia!
Por isso 
estão, como dragões, de sentinela
Junto do rei, junto da copa e da 
gamela.
Defendem-me. E eu ainda os insulto!... coitados!
Mandriões e glutões, gostam de bons bocados...
Tambêm eu... Porque 
os hei-de, afinal, descompor?
É da bílis, da inquietação, do mau 
humor
Em que eu ando... Nem sei... que demónio! foi praga...
Raios 
partam o doido e essa abantesma aziaga
Do cronista!... Não há que 
ver, fazem-me tonto!... 
Vendo o pergaminho: 
Mais esta geringonça inda por cima! 
Indo a assinar: 
Pronto! 
O DOIDO, _na escuridão_
Ai, a minh'alma anda perdida, anda perdida
Ou pela terra, ou pelo ar 
ou pelo mar...
Ai não sei dela... ai não sei dela... anda perdida,
E eu 
há mil anos correndo o mundo sem na encontrar!...
Pergunto às ondas, 
dizem-me as ondas:
--Pergunta ao luar...--
E a lua triste, branca e 
gelada,
Não me diz nada... não me diz nada...
Põe-se a chorar!
Pergunto aos lôbos, pergunto aos ninhos,
E nem as feras, nem os 
passarinhos
Me dizem onde habita, em que logar!...
Sangram-me os 
pés das fragas dos caminhos...
Não tenho alma, não tenho pátria, não 
tenho lar!...
Ai, quanta vez! ai, quanta vez!
Não passará talvez
A 
minh'alma por mim sem me falar!
Quem reconhece o cavaleiro antigo
Neste mendigo
Rôto e doido... quem há-de adivinhar?!...
Adivinhava ela... adivinhava!...
O cão no escuro, pela serra brava,
Não vai direito ao dono a farejar?
Adivinhava... É que está presa... é 
que está presa!
Ontem sonhei... (lembro-me agora!) que está presa
Naquela bruta fortaleza,
Numa cova sem luz, num buraco sem ar,
E 
que os carrascos esta noite, de surpresa, 
A vão matar! a vão matar! a vão 
matar!... 
Por isso o mar anda a rezar!... 
Por isso a lua desmaiada, 
Sem dizer nada... sem dizer nada... 
A olhar p'ra mim, branca de dor, fica a chorar!... 
Ribombam trovões, fusilam relâmpagos. Os cães, espavoridos, ululam 
sinistramente. 
O REI, _alucinado, clamando_: 
É demais! é demais!... Põe-me o caco do avesso!...
Um frenesim... 
Que fúria!... irrita-me... endoideço...
E anda às soltas êste ladrão dêste 
espantalho!...
Eu já o ensino, já o arranjo... um bom vergalho...
Marquês! marquês! marquês! 
SCENA IV
*O rei, Opiparus e Ciganus*, acudindo 
OPIPARUS: 
Meu Senhor!... 
CIGANUS: 
Meu Senhor!... 
O REI, _alucinado_: 
Vão-no prender!... vão-no prender!... Um salteador...
Tragam-mo 
aqui aos pés, de rastros, maniatado!...
Tragam-no aqui!... 
OPIPARUS, _à parte_: 
El-rei endoideceu, coitado! 
CIGANUS: 
Meu Senhor! meu Senhor, que indignação!... Dizei,
Alguem 
desacatou a pessoa d'el-rei,
Por acaso? 
O REI: 
Um fantasma louco entre o arvoredo... 
OPIPARUS: 
Um fantasma?!... Ilusão... O ar atordôa... 
CIGANUS: 
Mêdo
De que? de agoiros infantis, de sonhos vagos?
Com ministros 
leais e escudeiros bem pagos,
Que teme el-rei?!... 
O REI:
Não foi vertigem, não foi sonho...
Um brutamontes alienado, um 
gigante medonho
Que me não deixa... Quero vê-lo... Ide prendê-lo... 
andai... 
CIGANUS: 
Mas que fantasma é êsse aterrador? 
O REI, _levando-os ao balcão e apontando_: 
Olhai!
Alêm!... alêm!... alêm!... 
CIGANUS: 
Strambótica figura!...
É singular... é singular... 
OPIPARUS: 
Crime ou loucura...
Por certo um doido... 
O REI: 
Há já três noites, sem descanso,
Uivando loas sôbre loas... 
OPIPARUS: 
Doido manso... 
O REI: 
Ide prendê-lo!... amordaçai-o, maniatai-o!
Não me larga esta insónia 
há três noites!... Um raio
Dum profeta a grunhir cantochões de 
defuntos!...
Boa carga de pau... bom marmeleiro aos untos...
Mas 
vejam lá que o diabo às vezes, com a telha,
Não arme algum 
chinfrim... Peguem-no de cernelha! 
SCENA V
O rei, inquieto, preocupado, senta-se ao fogão. Os cães abeiram-se, 
uivando medrosos. Redobra a tormenta. Pestanejam, contínuos, 
relâmpagos formidáveis. 
O DOIDO, _no escuro, em voz plangente
de embalar crianças_: 
Os vivos tem mêdo aos mortos,
Que andam de noite ao luar...
Fantasmas de mortos
São enganos mortos...
Deixem-nos andar... 
deixem-nos andar!... 
Os vivos tem mêdo aos mortos,
Que andam sonhando a penar...
Quimeras de mortos
São desejos mortos...
Deixem-nos sonhar... 
deixem-nos sonhar!... 
Os vivos tem mêdo aos mortos,
Que andam cantando    
    
		
	
	
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