um monte sufficientemente alto 
para que toda a paysagem lhe apparecesse á vista, fundida a ponto de 
não distinguir uma arvore de um cazal, nem um rio de um valle sem
curso de agua? Pois succede assim nas campinas da historia do 
pensamento humano, quando as olhamos das cumiadas luminosas da 
critica. Vêem-se as cousas na sua essencia, não importam os accidentes. 
O fetiche que o selvagem adora, a imagem perante a qual se prostra o 
commum dos crentes, o architecto universal dos pensadores livres, e 
finalmente esse _quid_ innominado a que a philosophia moderna 
chamou Inconsciente--tudo isso é egualmente Deus: sómente é Deus 
percebido pela imaginação infantil, Deus percebido pela intelligencia 
vulgar, Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente 
incomprehendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas 
modalidades de uma mesma impressão, recebida e representada de 
fórma diversa, consoante a natureza e o estado de educação dos homens, 
são egualmente verdadeiras, egualmente santas e egualmente 
humoristicas, para aquelle que tem coração para sentir as cousas por 
dentro, e olhos para as ver de fora--objectivamente, como os allemães 
dizem, e nós diremos criticamente. 
Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nirvâna apenas intellectual, a 
que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que 
permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e 
classificando-as, sem todavia nos transmittir essa especie de frialdade 
de coração, propria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma 
planta ou um animal. O philosopho, impassivel ao analysar e classificar 
os phenomenos do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que 
provocam todas as vaidades e illusões, o amor que merecem todos os 
sentimentos ingenuos e fundamentalmente bons; hade alliar á 
comprehensão da nullidade extrinseca das cousas, a comprehensão da 
sua excellencia intrinseca; exigindo que o homem seja activo, porque a 
actividade é boa por ser indispensavel á saude do espirito, embora os 
objectos da actividade sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando 
considerados em si proprios e isoladamente. 
E eis ahi as razões porque eu não sou buddhista... nem Anthero de 
Quental o é, embora julgue sel-o. A evolução dolorosa que terminou 
com o seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do 
mar tenebroso da phantasia metaphisica, parece ter concluido. A edade, 
talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada
de bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia 
firme e sempre activa, é mais que provavel que o declinar da vida de 
Anthero de Quental enriqueça o peculio por signal bem pobre da 
philosophia portuguesa com algum trabalho tão digno de se conservar 
na memoria dos tempos, como estes _Sonetos_ que são as amargas 
flores de uma mocidade. Esse trabalho, porem, não será um cathecismo 
buddhista, não pode ser nenhuma revelação milagrosa do _verdadeiro_ 
systema, porque a sabedoria nos diz que toda a pretenção de Verdade é 
illusoria, pois sendo nós, a nossa intelligencia, os nossos pensamentos, 
simples e fugitivas contingencias, é loucura pensar que jamais 
possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o 
seu temperamento; e sabio é aquelle que se limita a registrar as relações 
das cousas. 
III 
Quem deante d'estes versos não sentir elevar-se-lhe o espirito, como 
n'uma oração, áquella especie de Deus que é compativel com o seu 
temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é por 
que tem dentro do peito, no logar do coração, um seixo polido e frio. 
Quem, no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas 
cortantes que a erriçam de angulos, pousar o olhar da alma sobre um 
d'estes sonetos e não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem 
um arroio de agua limpida, é porque tem a alma feita apenas de 
egoismo. Quem, emergindo dos montões de papelada que as imprensas 
vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas paginas, e não sentir o 
deslumbramento que os diamantes produzem, é porque a sua vista se 
embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua 
lingua perdeu o habito de fallar portuguez. 
Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto 
Anthero de Quental--e sómente o conhece quem com elle viveu largo 
tempo na intimidade--interroga-me geralmente d'este modo: «E _santo_ 
Anthero, como vae?» 
Dil-o com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho 
a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do 
nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingenuo que já não ha
nos ares que respiramos. 
A vida contemplativa, porem, a vida asceta inclusivamente: essa 
virtude austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos; 
esse observar constante de si proprio e o dispensar de um sorriso 
sempre bom, embora indifferente com frequencia, aos que alguma vez 
o rodeiam; a caridade, o amor, a abnegação, as tentações,    
    
		
	
	
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