ai extremo lança dois raminhos,
A chamar 
ainda por canções de ninhos
E a dizer aos astros um adeos final! 
Tal o pastor santo, já de vez cahido,
Já corcovadinho, flebil, quasi 
morto,
Arrimado ao velho baculo torcido,
Nada ouvindo, nada, com 
o duro ouvido,
Vagamente olhando com o olhar absorto, 
Ia pelos montes na tristeza infinda
D'um coração ermo, com a morte 
aceite,
A pedir aos anjos para ouvir ainda
Badalar ovelhas n'uma 
noite linda,
Quando a lua os campos alagasse em leite!... 
Seu bisavô fora guardador de gado,
Guardador de gado seu avô, seu
pae;
Creou filho e netos como foi creado,
E morreu ditoso porque o 
seu cajado
Seu rebanho ainda pastoreando vae! 
Candido, na paz das solidões dormentes,
Ignorando o mundo 
rancoroso e vil
Aos cem anos inda, com a fé dos crentes,
Punha 
olhos claros, simples, inocentes,
Na estrellinha d'alva das manhãs 
d'Abril! 
Levará no esquife para os ceos a palma
Da grandeza mansa, da 
virtude austera.
Realisou no mundo a perfeição da Alma:
Porque foi 
bondoso como a lua é calma,
Porque foi um santo sem saber que o 
era!... 
Vós, ó semideuses do entremez da Gloria,
Cesares, tiranos, capitães, 
heroes,
Epicas figuras de imortal memoria,
Que de serro em serro 
iluminaes a historia
Como crepitantes, tragicos faroes, 
Na região do Imenso, no Infinito puro,
Onde me deslumbra, como um 
sol, Jesus,
Não sois mais que larvas a tremer no escuro,
Que 
ninguem conhece, que eu em vão procuro
Com meus olhos calmos 
n'esse mar de luz! 
E o pastor d'ovelhas, que comeu centeio,
Que viveu nos montes, que 
dormiu nas grutas,
Tão asselvajado, cabeludo e feio,
Que dissereis 
quasi que esse monstro veio
Da matriz da terra, como as pedras 
brutas, 
Já liberto agora da Ilusão do mundo
Fez-se em anjo branco, inda 
outra vez pastor:
Milhões d'astros seguem seu olhar jocundo,
São 
rebanhos d'almas pelo azul profundo
As ovelhas novas do Ti 
Zé-Senhor!... 
90-91. 
VII
*O CAVADOR* 
O CAVADOR 
Dezembro, noite, canta o galo...
Rouco na treva canta o galo...
--Oh, 
dor! oh, dor!--
Aldeão não durmas!... Vae chamal-o,
Miseria negra, 
vae chamal-o!...
--Oh, dor! oh, dor!--
Bate-lhe á porta, é teu vassalo,
Que traga a enxada, é teu vassalo,
Miseria negra, o cavador! 
O vento ulula... Tremem ninhos...
Na noite aziaga tremem ninhos...
--Oh, dor! oh, dor!--
A neve cae, fria d'arminhos...
Na escuridão, 
fria d'arminhos...
--Oh, dor! oh, dor!--
Passa maldito nos caminhos,
D'enxada ao hombro nos caminhos,
Fantasma negro, o cavador! 
Vem roxa a estrella d'alvorada...
Vem morta a estrella d'alvorada...
--Oh, dor! oh, dor!--
Montanhas nuas sob a geada!...
Hirtas, de 
bronze, sob a geada...
--Oh, dor! oh, dor!--
Torvo, inclinado sobre a 
enxada,
Rasga as montanhas com a enxada.
Fantasma negro, o 
cavador! 
Cavou, cavou desde que é dia...
Cavou, cavou... Bateu meio dia...
--Oh, dor! oh, dor!--
De pé na encosta erma e bravia,
Triste na 
encosta erma e bravia,
--Oh, dor! oh, dor!--
Largando a enxada, 
«Ave Maria!...»
Resa em silencio... «Ave Maria!...»
Fantasma 
negro, o cavador! 
Cavou, cavou na serra agreste,
D'alva á noitinha em serra agreste...
--Oh, dor! oh, dor!--
E um caldo em premio tu lhe deste,
Meu 
Deos!... seis filhos tu lhe deste...
--Oh, dor! oh, dor!--
Batem 
trindades... «Pae celeste!...
Bemdito sejas, Pae celeste!...»
Resa, 
fantasma, o cavador! 
Cavou cem montes... que é do trigo?!
Gerou seis bocas... que é do 
trigo?!
--Oh, dor! oh, dor!--
Bateu a Fome ao seu postigo...
Bateu 
a Morte ao seu postigo...
--Oh, dor! oh, dor!--
«Que a paz de Deos
seja comigo!
Que a paz de Deos seja comigo!...»
Disse, expirando, 
o cavador! 
Junho--91. 
VIII 
*OS POBRESINHOS* 
OS POBRESINHOS 
Pobres de pobres são pobresinhos,
Almas sem lares, aves sem 
ninhos... 
Passam em bandos, em alcateias,
Pelas herdades, pelas aldeias. 
É em Novembro, rugem procellas...
Deos nos acuda, nos livre d'ellas! 
Vem por desertos, por estevaes,
Mantas aos hombros, grandes 
bornaes. 
Como farrapos, coisas sombrias,
Trapos levados nas ventanias... 
Filhos de Christo, filhos d'Adão,
Buscam no mundo codeas de pão! 
Ha-os ceguinhos, em treva densa,
D'olhos fechados desde nascença. 
Ha-os com f'ridas esburacadas,
Roxas de lirios, já gangrenadas. 
Uns de voz rouca, grandes bordões,
Quem sabe lá se serão ladrões!... 
Outros humildes, riso magoado,
Lembram Jesus que ande 
disfarçado... 
Engeitadinhos, rotos, sem pão,
Tremem maleitas d'olhos no chão... 
Campos e vinhas!... hortas com flores!...
Ai, que ditosos os
lavradores! 
Olha, fumegam tectos e lares...
Fumo tão lindo!... branco, nos ares!... 
Batem ás portas, erguem-se as mães,
Choram meninos, ladram os 
cães... 
Resam e cantam, levam a esmola,
Vinho no bucho, pão na sacola. 
Fructa da horta, caldo ou toucinho,
Dão sempre os pobres a um 
pobresinho. 
Um que tem chagas, velho, coitado,
Quer ligaduras ou mel-rosado. 
Outro, promessa feita a Maria,
Deitam-lhe azeite na almotolia. 
Pelos alpendres, pelos curraes,
Dormem deitados como animaes. 
Em caravanas, em alcateias,
Vão por herdades, vão por aldeias... 
Sabem cantigas, oraçõesinhas,
Contos d'estrellas, reis e rainhas... 
Choram cantando, penam resando,
Ai, só a morte sabe até quando! 
Mas no outro mundo Deos lhes prepara
Leito o mais alvo, ceia a mais 
rara... 
Os pés doridos lh'os lavarão
Santos e santas com devoção. 
Para laval-os, perfumaria
Em gomil d'ouro, d'ouro a bacia. 
E embalsamados, transfigurados,
Tunicas brancas, como em 
noivados, 
Viverão sempre na eterna luz,
Pobres bemditos, amen, Jesus!... 
Outubro--91
IX 
*CAMPO SANTO* 
CAMPO SANTO 
Ai ao relento, ai ao relento, sonham cavadores!...
Somno d'arminho... 
colxão de terra... lençol de flores!... 
Cahi dormentes,
Cahi exanimes, trementes,
Palidos silencios do 
luar dorido!
Litanias fluidas do luar dorido!
Misereres brancos do 
luar dorido!
Balsamos, piedades, orações    
    
		
	
	
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