carbone, que 
exhala paz e esquecimento! E a natureza, insensivel ao drama barbaro
do homem! Guerras, odios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, 
iniquidades, deixam-na tão indiferente e inconsciente, como o rochedo 
imovel, bulindo-lhe a asa d'uma vespa. O clamor atroador de todas as 
angustias não arranca um ai da imensidade inexoravel. A aurora sorri 
com o mesmo esplendor aos campos de batalha ou ao berço infantil, e 
as hervas gulosas não distinguem a podridão de Locusta da podridão de 
Joana d'Arc. Reguem vergeis com sangue de Iscariote ou com sangue 
de Christo, e os lyrios inocentes (estranha inocencia!) desabrocharão, 
egualmente candidos e nevados. 
A humanidade, emfim, é a victoria dos arrogantes sobre os humildes, 
dos fortes sobre os debeis, da besta sobre o anjo. E tendo de escolher 
entre vencidos e vencedores, entre o amor e o odio, o mal e o bem, o 
riso e as lagrimas, o seu coração misericordioso de poeta inclinou-se 
espontaneamente para a Dor, como as vergonteas para a luz. 
A dôr é o seu deleite. Busca-a, desejo febril!--por hospitaes, por cadeias, 
por antros, por alcoices. Fareja-a de noite nos bairros leprosos, cloacas 
de humanidade, vasadoiros d'almas, onde crimes, virtudes, vicios, 
angustias, raivas, desesperos, fermentam promiscuamente, aglomerados 
e abandonados, como esterqueiras, como entulhos. Pesquisa dedalos 
caliginosos, cafurnas sem fundo, abismos hiantes, boqueirões de 
sombra. Explora desvãos, trapeiras, minas, covas, esconderijos. Louco 
de piedade, engolfa-se nas trevas mudas e soturnas, que gotejam sangue, 
nas roucas escuridões tumultuosas, pavidas de gemidos, cortadas de 
clamores, anavalhadas de blasfemias. 
E do amago d'essas noites insondaveis pululam turbas espectraes de 
crucificados, hordas de monstros, bandos de miserias, cardumes de 
abominações e de agonias. Ullulam tropeis disformes e sangrentos, 
regougam fauces patibulares, choram, coroadas de ulceras, Magdalenas 
lividas, bocas de escarneo crocitam sem dentes e sem pudor, arquejam 
ralas estorturantes, gemem creanças vagabundas, tossem tisicos, ardem 
febres, lusem gangrenas e podridões... E tudo vago, indistincto, confuso, 
n'um rumor longo e subterraneo. Não se destacam, não se desenham as 
formas. Olhos, bocas, gestos, relampeando na sombra... Nada mais. A 
sombra voraz esbate as linhas e os contornos. É o mundo cahotico da
miseria, que a noite putrida gerou e a noite soturna ha-de engulir... É o 
seu mundo, o mundo dos pobres, meu grande visionario, quasi 
desconhecido e genial. 
Homens de gosto colecionam quadros ou estatuas. O meu amigo 
coleciona dôr. Não em galerias ou museus, como quem se dedica ao 
estudo biologico das varias formas de sofrer. Quando uma chaga 
aterradora o surprehende, não a invasilha n'um frasco, guarda-a no 
coração. 
Conta-lhe os ais, não os microbios. Em vez de a analisar, 
decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu laboratorio chimico existe 
apenas um reagente, que dissolve tudo: lagrimas. 
O poeta dos Pobres não é um romancista. A alma do evocador 
fluidicamente se desagrega nas almas de sonho que elle evoca. 
Dir-se-hiam espelhos, brancos, verdes ou azues, planos, concavos ou 
convexos, reflectindo todos elles um unico semblante, que julgamos 
distinto, porque aparece deformado. 
Chamei aos Pobres uma confissão religiosa. Não ha duvida. Os seus 
pobres, meu amigo, são bocas de visões, articulando a alma d'um 
vidente. Falam a sua lingua e contam-nos a sua historia. Não a historia, 
no minuto e na rua, do homem-sicrano, mas a historia, no espaço e no 
tempo, do homem infinito, que vem de Deus e para Deus caminha. 
No drama dos Pobres ha duzias de actores e um só personagem: o 
dramaturgo. As suas figuras não constituem individualidades reaes, 
caracteres verosimeis, logicamente architetados e definidos pelas 
inumeras causas de existencia, conglobados em duas ordens 
genericas,--a herança e o meio. Os seus ladrões, assassinos e meretrises, 
não roubam, não matam, não copulam: sofrem. Sofrer, eis o seu mister. 
Mouca, Luiza, Gebo, Golim,--pseudonimos. O nome real, o nome 
verdadeiro de todos elles é um só: a Dôr. 
Inevitavel. Desde que o meu amigo rasgou as mascaras enganadoras ao 
Universo, para lhe descobrir a essencia e natureza intima, e desde que a 
lei do Universo é o predominio do mais feroz e do mais forte, toda a
imensa humanidade, tumultuosa e vária, se resume logicamente em 
dois homens apenas: o algoz e a vitima, o homem que sofre e o homem 
que faz sofrer. Os bons são os que padecem. A miseria, mesmo sinistra 
e delinquente, é já um principio de virtude. Nenhum dos ladrões, 
nenhuma das prostitutas do seu poema resvalaram ao vicio ou ao crime 
por vontade propria, por fatalidade fisiologica. Obrigou-os a fome, 
calcou-os a injustiça. A sua infamia e a sua ignominia é a avareza ou a 
luxuria dos homens opulentos e devassos. Todos os ricos, ainda os 
caridosos, são perversos, e todos os miseraveis, ainda roubando ou 
esfaqueando, são creaturas boas, porque são vitimas dos primeiros. Os 
retratos dos bemfeitores do seu hospicio (pag. 59) parecem-lhe «uma 
galeria de afogados, todos solemnes, ricos e maldosos, hirtos, de labios 
finos    
    
		
	
	
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