Os Bravos do Mindello | Page 2

Faustina da Fonseca
latidos os c?es das quintas.
Soaram trindades em Santa Luzia, vibrou na alegria da madrugada esse toque de sino, impregnado ao p?r do sol pela melancholia da tarde; seguiu-se-lhe o repique annunciando festa; tocaram na S�� �� missa das almas.
Cessou o bater da roupa no lavadoiro da pia, persignaram-se devotamente e benzeram-se de hombro a hombro a creada e a tia Pulcheria.
Veiu de dentro benzendo-se tambem a tia Dorotheia, mais pesada, mais gorda, encher a talha no perenne jorro d'agua gorgolejando no tanque, onde os peixes vermelhos mostravam o amplo e fundo d'essa abundancia de agua, trasbordando para a grande pia de lavar, dando vi?o aos cravos, rosas, secias e perpetuas dos canteiros, �� madresilva da janella, �� abobora do telhado do forno, ao p�� de vinha nascido de encontro �� pedra do fundo, desenvolvendo-se em ramadas junto da arquinha onde se espetava a bica de ferro.
Recolheu-se, para o n?o verem faltar �� ora??o matinal e, assim de p��, varejava-lhe o olhar o bra?o d'agua que dera o nome d'Angra �� sua cidade.
Mas n?o avistava esse navio todos os dias receiado, cujo tiro alarmante vinha findar-lhe os devaneios.
Sa��am �� pesca barcos �� vela, avivando o azul n'um recorte de gar?a; vogavam outros em cadencia, como buzios deitando por banda as curvas pernas a fugirem no calhau.
Latinos inclinados, bordejava um cahique por dobrar a ponta de Santo Antonio e entrar no porto onde soprava o vento carpinteiro, lenhador de navios, dos ilheus ao caes da Figueirinha.
Illuminava o nascer do sol a humida neblina, desenrolando altas montanhas, picos azulados, sinuosidades como largas muralhas flanqueadas por torres, das que vira em registos dos logares santos, cidades, extensas bahias, arvoredos polvilhados d'oiro, reflexos da Antillia submergida, que havia de irromper das ondas quando voltasse el-rei D. Sebasti?o no cavallo branco; miragem da propria ilha, como a que arrast��ra os descobridores a aproarem ao mysterio dos horizontes sem fim, at�� ao desengano do gelo do Labrador e da Terra Nova, �� inextricavel vegeta??o de sarga?os d'esse mar de inferno.
Tambem sentia a ancia do desconhecido, herdada dos primeiros povoadores da ilha Terceira, base das arremettidas a esse mysterioso oriente, que pretendiam tomar por occidente, dando por fim rumo a Colombo; tambem queria saber o que haveria para ��lem da curva do mar largo, essas terras onde tudo se decidia: a Fran?a, m?e da liberdade, regressada ao antigo regimen, invadindo a Hespanha constitucional, o que animara D. Miguel a derrubar na Villafrancada as institui??es de Vinte; a Hespanha, de Cadiz, a cujo exemplo estal��ra a revolu??o de 24 de agosto de 1820, tentando agora restabelecer a inquisi??o; a Inglaterra, que apoi��ra a carta constitucional doada por D. Pedro, e decerto auxiliaria a revolu??o de 18 de maio contra a usurpa??o de D. Miguel, secundada na ilha em 22 de junho, ainda n?o havia um mez; o Brasil de onde vinha dinheiro; Portugal para onde iam tributos; Lisboa, de onde uma embarca??o traria um primo para lhe arrebatar a mulher amada, ou viria buscal-a e levar-lha.
Annullado na absorp??o do mar largo e das terras aonde conduzia, surgiu-lhe de repente, a pannos largos, guinando n'uma bordada, saindo detraz do Monte Brasil, a fragata Princesa Real, mostrando no balan?o a bateria rasa, cintada de pe?as negras em carretas vermelhas abocadas ��s portinholas.
Colheu o velame dos tres mastros, soltou a ancora, e o golpe rapido da antena, fazendo respingar a agua, foi o signal para o saltearem lanchas e escaleres.
Tudo acabaria assim?
Sentia-se ligado ��quelle navio, dependente da sua rota, do porto de onde vinha, do ancoradouro para onde havia de largar, das cartas que trazia no forte bojo, e espica?ava-o o impeto de sair d'essa dependencia, �� merc�� do que vinha de f��ra, elle como a terra; de reagir dentro do seu meio, do seu circulo, dos seus desejos, das suas esperan?as, por f��rma a terem que contar com elle.
Havia de ficar ��quella mesma janella, vendo-o perder-se na bruma, adivinhando, no palpitar de um len?o, a noiva perdida para sempre?
Voltou-se e olhou ao longo da grande bahia do Fanal, a oeste do Monte Brasil, desde a encosta da serra de Santa Barbara, at�� ��s recortadas negruras de S. Matheus da Calheta, aonde a espuma arrebentava.
Sem uma incerteza, por entre a mancha escura dos pomares de S. Carlos e do Pico da Urze; em meio do xadrez de cerrados amarellos de trigo, verdes de milharaes, negros da ceifa; fitava o mirante da quinta onde ella o vinha esperar, o caramanchel em que passavam tardes, o casar?o onde um pae lha defendia.
Como que via j�� o pateo cheio, carros de bois carregando os grandes bahus, ha mezes atulhados de rouparia, empachando a casa de entrada; e o carro??o de coiro bolorento, baloi?ando-se nas grossas correias, de largas fivellas areiadas, arrastado �� for?a da aguilhada por duas juntas, de guiseiras, levando Maria ao embarque, chocalhando
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