O Mandarim | Page 2

José Maria Eça de Queiroz
de
Noticias; pelas tardes de verão, nos bancos gratuitos do Passeio,
gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso á noite no Martinho,
sorvendo aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a patria...
Depois, nunca fui excessivamente infeliz--porque não tenho
imaginação: não me consumia, rondando e almejando em torno de
paraisos ficticios, nascidos da minha propria alma desejosa como
nuvens da evaporação d'um lago; não suspirava, olhando as lucidas
estrellas, por um amor á Romeo, ou por uma gloria social á Camors.
Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangivel, ao que já fôra
alcançado por outros no meu bairro, ao que é accessivel ao bacharel. E
ia-me resignando, como quem a uma table d'hôte mastiga a bucha de
pão secco á espera que lhe chegue o prato rico da Charlotte russe. As

felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia
como portuguez e como constitucional:--pedia-as todas as noites a
Nossa Senhora das Dôres, e comprava decimos da loteria.
No entanto procurava distrahir-me. E como as circumvoluções do meu
cerebro me não habilitavam a compôr odes, á maneira de tantos outros
ao meu lado que se desforravam assim do tedio da profissão; como o
meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permittia um vicio--tinha
tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra antigos volumes
desirmanados, e á noite, no meu quarto, repastava-me d'essas leituras
curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos: Galera da
Innocencia, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal Desherdados... O
typo venerando, o papel amarellado com picadas de traça, a grave
encadernação freiratica, a fitinha verde marcando a
pagina--encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra
gorda davam uma pacificação a todo o meu sêr, sensação comparavel á
paz penetrante d'uma velha cêrca de mosteiro, na quebrada d'um valle,
por um fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua triste...
Uma noite, ha annos, eu começára a lêr, n'um d'esses in-folios vetustos,
um capitulo intitulado Brecha das Almas; e ia cahindo n'uma
somnolencia grata, quando este periodo singular se me destacou do tom
neutro e apagado da pagina, com o relevo d'uma medalha d'ouro nova
brilhando sobre um tapete escuro: copío textualmente:
«No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de
que a Fabula ou a Historia contam. D'elle nada conheces, nem o nome,
nem o semblante, nem a sêda de que se veste. Para que tu herdes os
seus cabedaes infindaveis, basta que toques essa campainha, posta a teu
lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um suspiro, n'esses confins da
Mongolia. Será então um cadaver: e tu verás a teus pés mais ouro do
que póde sonhar a ambição d'um avaro. Tu, que me lês e és um homem
mortal, tocarás tu a campainha?»
Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella interrogação
«homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me facêta, picaresca,
e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as linhas
fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam,

d'uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a
interpellação estranha--«tocarás tu a compainha?»
Se o volume fosse d'uma honesta edição Michel-Levy, de capa
amarella, eu, que por fim não me achava perdido n'uma floresta de
ballada allemã, e podia da minha sacada vêr branquejar á luz do gaz o
correame da patrulha--teria simplesmente fechado o livro, e estava
dissipada a allucinação nervosa. Mas aquelle sombrio in-folio parecia
estalar magia; cada letra affectava a inquietadora configuração d'esses
signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as virgulas
tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos n'uma
alvura de luar; no ponto d'interrogação final eu via o pavoroso gancho
com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se
refugiar na inviolavel cidadella da Oração!... Uma influencia
sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para fóra
da realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas
visões--d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem dôr, longe,
n'um kiosque chinez, a um ti-li-tin de campainha; do outro toda uma
montanha de ouro scintillando aos meus pés! Isto era tão nitido, que eu
via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como
cobertos d'uma tenue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras
rolando juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na
campainha, pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario
francez--a campainha prevista, citada no mirifico in-folio...
Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metallica
me disse, no silencio:
--Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha,
seja um forte!
O abat-jour verde da vela punha uma penumbra em redor. Ergui-o, a
tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento,
todo vestido de preto, de chapéo alto, com as duas mãos calçadas de
luvas negras gravemente apoiadas ao cabo d'um
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