toda a tua vida, porque nunca me soubeste 
comprehender,--porque nunca foste capaz de imaginar que, em logar 
d'um amante, só tinhas diante de ti um leproso vil, a quem a sociedade 
contaminou com o seu halito corrompido, para depois o deixar triste e 
solitario neste theatro ignobil da humana corrupção. Tu, que foste boa e 
meiga para comigo, procura outro mais digno de ti. Não faltarão 
homens, que te saibam estimar. Vae, vae correr mundo; e deixa-me, 
deixa-me por uma vez!... 
Neste instante, desabotoou-se, por acaso, o casaco de Alvaro, e de seu 
seio caíu um leque, que lhe havia sido dado poucas horas antes por 
aquella joven e espirituosa Emilia, de quem já nos occupámos no 
principio d'esta narrativa. 
Paulina empallideceu terrivelmente, e ia para apanhar aquelle objecto, 
tão caro e saudoso, de seu amante, quando elle se interpoz á sua
vontade, collocando-se de modo a impedir a realisação, bramindo 
rancoroso e medonho. Os olhos chispavam-lhe sangue, e a bocca 
espumava-lhe de satanica raiva. 
Tambem não articulou nem mais uma palavra. Apanhou o leque com 
soffreguidão inaudita; abriu-o, e começou a reparar n'uma borboleta 
que alli se achava gravada. Depois sorriu-se, e, sempre com os olhos 
fitos no mesmo ponto, exclamou: 
--Qual te via sempre, mariposa gentil, adejando mimosa por sobre os 
meus sonhos radiantes, appareceste-me hoje, mais bella e sublime 
como nunca te havia imaginado. A tua imagem despertou ao longe os 
echos da minha alma; consolou-me o fulgor da tua benefica luz, na 
esperança d'um ditoso porvir! 
Sê grande, minha Emilia, dá-me a crença e a vida outra vez! Suavisa o 
meu penoso soffrer, com o teu balsamo salutar, e, com o orvalho de teu 
doce coração, refrigera as chagas da minha imaginação enferma!... 
Alvaro saíu, então, com tenções de nunca mais voltar áquella casa. 
Paulina, essa jazeu por muito tempo n'um abatimento deploravel, até 
que, ao fim de alguns dias, se resolveu a ir mendigar de porta em porta 
o pão ázimo da desventura e do arrependimento. 
Enganara-se, porém, aquella pobre mulher, quando julgara ter perdido 
para sempre o seu amante, que, ainda no opprobrio da sua existencia, 
não podera olvidar. 
Um dia Alvaro regressou a casa, completamente regenerado d'aquelles 
vicios hediondos, que nós lhe conhecemos na sua mocidade estouvada, 
e perfeitamente arrependido das passadas loucuras. 
Emilia fôra o seu anjo da guarda. Quando soube da mulher vilipendiada, 
d'aquella boa e angelica Paulina, longe de a rivalisar, pelo contrario, 
tractou de lhe promover o seu maior bem. E foi tanta a longanimidade 
do seu coração, que um mez depois Alvaro era legitimo esposo de 
Paulina e um dos mais honrados e bemquistos cavalheiros da invicta
cidade do Porto. 
Deixal-os ser felizes. Que a benção do Senhor se compadeça dos seus 
peccados, e faça descer sobre elles o anjo da felicidade e do amor. 
O mundo é assim! 
 
*UM DRAMA INTIMO* 
 
UM DRAMA INTIMO 
Ao meu amigo Agostinho F. Velho 
La vie en effet n'est qu'une idée sans valeur, une page blanche, qu'otan 
n'y a pas écrit ces mots:--J'ai souffert, c'est à dire, j'ai vécu. 
BARON DE FEUCHTERSLEBEN. 
I 
«Como Amelia era formosa! que bondade a sua! que terna expressão a 
do seu rosto angelico; e, que sentimento! que grandeza d'alma!... 
«Como não eram radiosos aquelles sonhos da loura criança, que á noite 
ia segredar á brisa os seus amores sentidos, em infantil rubor!... 
«Oh!... e que meiguice não era a sua, espalhando tão docemente o 
aroma de seus argenteos cabellos á viração perfumada da tarde, e 
despertando, ao longe, os echos da solidão com o brando dedilhar da 
sua harpa portentosa!... 
«Phantasma cruel, que, por tanto tempo, me alimentaste o porvir 
grandioso das minhas aspirações ephemeras! Sombra implacavel d'um 
destino fallaz! Effigie derradeira d'uma chimera inutil! Espectro 
medonho da medonha existencia! Mulher! anjo! demonio! tudo 
emfim!...
«Porém, não!... renasça uma crença, ao menos! reviva a fé, em nossos 
corações! dissipem-se as negruras da vida, e surja a aurora boreal d'um 
futuro certo, e de uma verdade eterna!... 
Nestes termos apaixonados fallava o venerando presbytero, Francisco 
de Castro, ao seu affectuoso amigo, Alberto de Carvalhal, quando um 
raio furtivo do sol, penetrando de soslaio por entre a coma dos 
pinheiraes, que se erguiam altivos lá no cume das montanhas, os veio 
despertar do inebriante gozo e suavissimo prazer, em que, desde longas 
horas, se haviam esquecido dois amigos desditosos, profundamente 
adormecidos nos braços d'uma saudade infinda. 
O pescador deixara a choupana, que lhe era consolação extrema nas 
horas de afflictivos transes e doloroso penar, para ir estender a rede na 
praia mais proxima! 
Ao longe ouvia-se a voz rouquenha e estridula do gondoleiro, 
accordando aos echos da sua alma o doce nome da amante ditosa, que, 
em terra, por elle velava, dia e noite. 
O astro do dia, erguendo-se phantasticamente das salsas, escumosas 
ondas em que parecera mergulhado,    
    
		
	
	
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