topo da sala 
ergue-se o throno de Abdu-r-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes 
do paiz de Fars. Abdu-r-rahman está ahi sósinho. O kalifa passeia de 
um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante pára e 
escuta, como se esperasse ouvir um ruído longinquo. No seu gesto e 
meneios pinta-se a mais viva anciedade; porque o unico ruído que lhe 
fere os ouvidos é o dos proprios passos sobre o xadrez variegado, que 
fórma o pavimento da immensa quadra. Passado algum tempo, uma 
porta, escondida entre os brocados que forram os lados do throno, 
abre-se lentamente, e um novo personagem apparece. No rosto de 
Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda 
mais viva. 
O recem-chegado offerecia notavel contraste no seu gesto e vestiduras 
com as pompas do logar em que se introduzia, e com o aspecto 
magestoso de Abdu-r-rahman, ainda bello apesar dos annos e das cans 
que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os 
pés do que entrára apenas faziam um rumor sumido no chão de 
marmore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou tunica era de lan 
grosseiramente tecida, o cincto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, 
porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum 
espanto produzia nelle aquella magnificencia. Não era velho; e todavia 
a sua tez tostada pelas injurias do tempo estava sulcada de rugas, e uma 
orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. 
Chegando ao pé do kalifa, que ficára immovel, cruzou os braços e
poz-se a contempla-lo calado. Abdu-r-rahman foi o primeiro em 
romper o silencio: 
"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando 
annuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre 
triste como o teu nome. Nunca entraste a occultas em Azzahrat senão 
para me saciares de amargura; mas apesar disso eu não deixarei de 
abençoar a tua presença, porque Algafir--dizem-no todos e eu o creio--é 
um homem de Deus. Que vens annunciar-me, ou que pretendes de 
mim?" 
"Amir-al-muminin[1], que póde pretender de ti um homem cujos dias 
se passam á sombra dos tumulos pelos cemiterios, e a cujas noites de 
oração basta por abrigo o portico de um templo; cujos olhos tem 
queimado o chôro, e que não esquece um instante que tudo neste 
desterro, a dôr e o goso, a morte e a vida, está escripto lá em cima? Que 
venho annunciar-te?!... O mal; porque só mal ha na terra para o homem, 
que vive como tu, como eu, como todos, entre o appetite e o rancor; 
entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacaveis 
inimigos!" 
"Vens, pois, annunciar-me uma desventura?!... Cumpra-se a vontade de 
Deus. Tenho reinado perto de quarenta annos, sempre poderoso, 
vencedor e respeitado; todas as minhas ambições tem sido satisfeitas, 
todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de 
gloria e prosperidade só fui inteiramente feliz quatorze dias da minha 
vida[2]. Pensava que este fosse o decimo quinto. Devo acaso apaga-lo 
do registo em que conservo a memoria delles, e em que já o tinha 
escripto?" 
"Pódes apaga-lo:--replicou o rude fakih--pódes, até, rasgar todas as 
folhas brancas que restam no livro. Kalifa! vês estas faces sulcadas 
pelas lagrymas? vês estas palpebras requeimadas por ellas? Duro é o 
teu coração, mais que o meu, se em breve as tuas palpebras e as tuas 
faces não estão semelhantes ás minhas." 
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pallido de Abdu-r-rahman: 
os seus olhos serenos como o ceu, que imitavam na côr, tomaram a 
terrivel expressão que elle costumava dar-lhes no revolver dos 
combates, olhar esse que só por si fazia recuar os inimigos. O fakih não 
se moveu, e poz-se a olhar também para elle fito. 
"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas póde chorar arrependido de
seus erros diante de Deus; mas quem disser que ha neste mundo 
desventura capaz de lhe arrancar uma lagryma, diz-lhe elle que 
mentiu!" 
Os cantos da bôca de Al-gafir encresparam-se com um quasi 
imperceptivel sorriso. Houve um largo espaço de silencio. 
Abdu-r-rahman não o interrompeu: o fakih proseguiu: 
"Amir-al-muminin, qual de teus dous filhos amas tu mais? Al-hakem, o 
successor do throno, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sabio 
e guerreiro Abdallah, o idolo do povo de Korthoba?" 
"Oh,--replicou o kalifa sorrindo--já sei o que me queres dizer. Devias 
prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os christãos 
passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. Meu velho tio 
Al-mod-dhafer já depoz a espada victoriosa, e crês necessario expôr a 
vida de um delles aos golpes dos infiéis. Vens prophetisar-me a morte 
do que partir. Não é isto? Fakih, creio em ti, que és acceito ao Senhor; 
mas ainda creio mais na estrella dos Beni-Umeyyas. Se eu amasse um    
    
		
	
	
	Continue reading on your phone by scaning this QR Code
	 	
	
	
	    Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the 
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.