apagar na 
mente a faisca do genio, que lhe desceu ao berço, ou mata a inspiração 
na orgia, ou abysma-se com ella, por feretros e ossadas até 
materialisa'-la nas fórmas repugnantes de uma dor monstruosa. 
E, se assim não fizer, o seu alaúde não tem sons, e o genio fallece-lhe 
de impotencia. Mas o poeta quer este titulo; cantor quer a grinalda das 
flores em troca da corôa de espinhos; é preciso cantar. 
Se lhe pedisseis, em vez de horrores, uma poesia banhada de luz celeste, 
em que os mil reflexos de cima fossem as virtudes possiveis no 
mundo... 
Se lhe pedisseis, em vez da pagina sempre negra da sua vida, as 
alvissimas alegrias de uma virgem, que, a fugir de um mundo, que se 
lhe pinta ingrato á sua alma candida, se refugia aos pés de Maria, 
Rainha das Virgens, a pedir-lhe o céo, como repouso inviolavel da 
innocencia... 
Se lhe pedisseis a doçura das lagrimas da pobre, que aconchega seus 
filhos n'um envoltorio de andrajos, e ajoelha depois, entregando-os á 
Providencia, para que, ao amanhecer, não sejam muito repetidos os 
seus gritos de fome... 
Pedi. 
O poeta ha-de dizer-vos que a luz do céo é esse oceano de luz, que 
banha a terra, quando as arvores florescem e as arvores saudam ao 
alvorecer um sol esplendido. 
Ha-de falar-vos da virgem, arfando esperanças no seio immaculado, 
mas esperanças todas d'aqui, todas embalsamadas pelo incensorio das 
paixões terrenas. 
O pobre, esse que vale bem a pena de uma poesia, de uma pagina de 
romance, é sempre a victima da má organisação social, e de uma 
mentirosa economia politica. Vê'-lo-heis invectivar o rico, com toda a 
iracundia de uma inoffensiva estrofe; mas o pobre que continua nas
palhas da miseria, esse não recebe uma consolação em nome do futuro, 
do céo, e das promessas de Jesus Christo. É sempre o pobre recrutado 
para as fileiras que guerreiam o rico. 
Eu pensei, uma vez, na vastidão de assumptos sobre que o sceptro do 
talento extende o seu imperio. Chamando á reminiscencia o acervo de 
leituras recreativas, que fiz, durante alguns annos, entrevi nos meus 
tempos nebulosos o muito tempo consumido, os muitos volumes 
folheados, e não poderei classificar-vos, em synopse de idéas, uma só 
que me prestasse ao espirito, ou ao coração, ou á cabeça. 
Aprendi o desengano no romance, antes que a sociedade m'o desse. 
Libei na poesia do seculo a mentira, antes que o coração contaminado 
m'a inspirasse. 
Aborreci-me de mim e das minhas leituras, como se o livro e a poesia 
fossem um sarcasmo para quem nas más horas, lhe mendiga 
espairecimentos para o espirito. 
Vislumbravam-me no escuro das minhas idéas religiosas uns clarôes 
pallidos do que o romance e a poesia deveriam ser para adoçarem 
muitos infortunios. Mas, que me pedissem a idéa formulada no livro! 
Faltava-me a convicção das virtudes do balsamo para saber applica'-lo 
á ferida. 
Não tinha eu provado ainda as doçuras da religião para sentar-me com 
a taça do Evangelho, á borda do caminho, e dizer ao peregrino cançado: 
Bebe!...................................... 
Dão-vos tedio estas minhas considerações? Não são vaidosas. Eu 
juro-vos que me doeria muito se uma verdade, esboçada com amplos 
contornos, não valesse mais que uma mentira, alinhada com o ouropel 
de um desusado estylo. 
O que está dito é o prefacio do meu romance. Duas palavras 
resumem-n'o laconicamente n'uma idéa conceituosa.
Sei em que tempo escrevo, e comtudo, ouso nos estreitos limites de que 
posso dispôr, ajustar em molde christão um genero, raras vezes assim 
tratado, quer pela costumeira da forma, quer pelo estylo, quer pelas leis 
da escola. 
Escrevo um romance, ou antes descanto em prosa uma virtude, porque 
não desafinarei, em quanto possa, a lyra em que fiz soar algumas 
poesias, unicas de que me não culpo, nem arrependo. As outras... 
Se eu pudesse avaliar a vossa opinião, consolava-me de não ser 
enganado pela minha consciencia de christão e de artista. 
Porto--em 1853. 
 
LAGRIMAS ABENÇOADAS 
 
LIVRO I 
I 
Disseram muitos dos que estavam em redor de uma creancinha, na pia 
do baptismo, que na face d'ella havia uma luz mysteriosa, como a 
projecção de um cirio invisivel, que, n'aquelle instante solemne, 
allumiasse, nas mãos de um anjo, as cerimonias do sacramento augusto. 
Visão de boas almas. 
Era uma menina de nove dias. 
Sua madrinha era Nossa Senhora da Conceição, fulgurante de mil 
lumes, no seu docel de seda e prata, com as mãos cruzadas sobre o seio, 
com os olhos extaticos no céo, como seguindo o trilho de estrellas por 
onde, aos pés do Eterno, voejava o anjo da ANNUNCIAÇÃO. 
Seu padrinho era um duque, vestido de ouro, com as suas insignias de 
general em chefe, com o seu thesouro de condecorações guerreiras a 
cobrirem-lhe o peito, onde pulsava sangue de reis, que não valia mais,
por isso, em coração de homem.    
    
		
	
	
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