Galatéa | Page 2

António Joaquim de Carvalho
de hum vivente:?Mas elle vem, n?o posso resistir-lhe,?Já n?o posso esconder-me, nem fugir-lhe;?Se fujo desta parte, he ribanceira,?Se daquella, me affogo na ribeira;?Pois nella acabarei, morrer n?o temo;?De huma só morte acabe Polyfemo.
LAURINDO.
Detem-te, amigo, e espera, que fazias??A ti mesmo matar-te pertendias??Seres comtigo mesmo ímpio tyranno,?Para hum damno evitar com maior damno!
POLYFEMO.
Deixa, deixa, que eu morra por piedade,?Porque morrendo, evito a crueldade?Dos ímpios Deoses: ah! Viver n?o quero,?Pois vida t?o penosa n?o toléro:?Tu contarás á falsa Galatéa,?Que por ella me expuz á morte feia;?Porém no peito o cora??o me estalla,?Vendo, que ácis tyranno ha de logralla:?Mas logre-a, logre-a, embora, oh que tormento!?Que eu só, por tal n?o ver, morrer intento.
LAURINDO.
Socega, amigo, queres dessa sorte?Dar a vida, por quem te causa a morte??Queres vingar-te della socegado??Desprezou-te, despreza-a: estás vingado.
POLYFEMO.
Desprezar Galatéa, e offendella?Quando só morrer por ella!?Isso n?o, que depois de eu adoralla,?Valor n?o tenho para maltratalla:?Ella pratique embora a crueldade,?Que eu n?o devo imitar-lhe a impiedade.
LAURINDO.
Conheces, que te offende essa perjura,?E inda morres por ella? Oh que loucura!
POLYFEMO.
Sim, amigo, traidora a considero;?Mas quiz-lhe bem: querer-lhe mal n?o quero.?Eu n?o lhe amo o rigor, sim a belleza,?Que he parto singular da natureza:?Tu, que a conheces, vê, se raz?o tenho?Para adoralla com t?o grande empenho:?O lindo rosto, aquelles olhos bellos,?T?o matadores, que em chegando a vêllos,?Parece, que do rosto lhe saltav?o,?E que para n?o vêllos me cegav?o.?As loiras tran?as, bem como doiradas,?Sobre seus alvos hombros espalhadas.?Se as costas me voltava por desprezo,?Como que a ellas me levava prezo:?Nas lindas faces se me figurav?o?Duas papoilas, que entre a neve estav?o.?A boca, que em conceitos sempre acerta,?Parecia huma rosa meia aberta;?Mas quando grave, e graciosa ria,?Oh quanto ent?o mais bella parecia!?Mostrando os claros dentes, que esmaltav?o?Seus bei?os, que de nácar se formav?o;?E co'a for?a do riso as faces bellas?Duas covas fazi?o como estrellas.?As m?os por engra?adas, e pequenas?Pareci?o formosas a?ucenas.?Mil vezes quiz beijar-lhas; porém ella,?Que o damno prevenia na cautéla,?Escondendo-as, de mim mais se affastava,?Que até nisto ser casta bem mostrava.?Estas bellezas, esta honestidade?For?o priz?es da minha liberdade,?E quanto as lindas m?os mais me negava,?Tanto as doces priz?es mais me apertava;?Mas n'huma sésta vi, que ella dormia?Junto do pote, que na fonte enchia:?Vou-me pé ante pé, e hindo a beijar-lhas,?Me arrependi, porque temi manchar-lhas.?Nem só para pegar-lhes valor tinha,?Porque m?o t?o grosseira, como a minha,?N?o devia tocar aquella neve,?Que só com outra igual tocar-se deve;?Mas immovel fiquei, pois só gostava?De ver a bella ac??o, em que ella estava.?O branco rosto sobre o curvo bra?o,?Outra m?o tambem curva no rega?o:?O corpo reclinado sobre a fonte,?E a curta sombra, que lhe dava o monte,?Só metade do rosto lhe cubria,?Que muito mais formosa inda a fazia.?Eu, que só me detinha em admiralla,?Sem que tivesse intento de acordalla;?Como de gosto estava arrebatado,?Sem que eu sentisse, cahe me o cajado:?Dá-lhe nos pés: acorda ella assustada,?Vê-me, levanta-se, e com voz irada?Me diz: "Vil, só comigo! Que fazias??"Dize: acaso offender-me pertendias??"Se por gigante intentas de vencer-me,?"Matar-me poderás, mas n?o render-me:?"Que a minha honestidade he t?o constante,?"Que n?o cede á violencia de hum gigante.?N?o, (eu lhe respondi) n?o te offendia:?Nem de ti outra cousa pertendia,?Mais do que ao menos, pois te n?o lograva,?Ver-te: e so com te ver me contentava.?Se nisto te offendi, ou me desculpa,?Ou me castiga, se me achares culpa:?Que se eu da tua m?o for castigado,?Serei ditoso, se antes desgra?ado.?Mas dize-me, cruel, se me estimaste,?Porque raz?o sem culpa me deixaste??E se indigno me achavas para amante,?Porque juraste de me ser constante??Que resposta daria a fementida??"Vai-te louco, (me diz) que aborrecida?"Até de ouvir-te estou, nem posso dar-te?"Outra raz?o maior de desprezar-te,?"Sen?o, que as Leis de Amor já n?o tolero:?"Amei-te, em quanto quiz, hoje n?o quero.?"Em fim, tu n?o és do meu agrado:?"Basta: vai-te, que estás desenganado.?E com este rigor aquella ímpia?Foge: chamo-a, mais ella me fugia:?Eu vendo a ir t?o bella, quanto irada,?Corpo gentil, cintura delicada,?Afflicto exclamo: Ah! Deshumana féra!?Nunca te eu víra, ou nunca te perdêra.
LAURINDO.
Ainda louvas a ingrata por formosa,?Quando enorme se fez, sendo aleivosa??Polyfemo, se queres ser discreto,?N?o recordes a offensa, nem o affecto:?Que o affecto tambem o tempo o gasta,?E a offensa he parto de huma louca, basta?Que á raz?o nunca os olhos tem abertos,?E sem luz que fará? Mil desacertos:?Por isso áquelle, que extremoso a trata,?A paga, que lhe dá, he ser-lhe ingrata.?Bem como o bravo lobo carniceiro,?Que vê, que a innocencia de hum cordeiro?N?o péde entranhas ter para aggravallo,?Por isso mesmo quer despeda?allo;?Mas se este acha hum rafeiro, que o extingue,?Tambem ella achará quem bem te vingue:?E no entanto o melhor he esquecella,?E se possivel for, nunca mais vella.
POLYFEMO.
Tambem deixar de a ver he impossivel,?Porque sem vella, a dor mais insoffrivel?Creio, que dentro n'alma padecesse,?Como a flor, que sem Sol murcha, e n?o cresce.?Ah! Se eu agora a visse, e lhe fallasse,?Talvez que a meus gemidos se abrandasse:?E póde ser, que a achasse arrependida?De perder,
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