em socego. Assim, que o reino, onde todo o povo é mau, não se 
pode supportar muito tempo, porque, como a alma supporta o corpo e 
partindo-se d'elle, o corpo se perde, assim a justiça supporta os reinos e 
partindo-se d'elles perecem de todo. 
Ora, se a virtude da justiça é necessaria ao povo, muito mais o é ao rei; 
porque se a lei é regra do que se ha de fazer, muito mais o deve de ser o 
rei que a põe e o juiz que a ha de encaminhar, porque a lei é principe 
sem alma, como dissemos, e o principe é lei e regra da justiça com 
alma. Pois quanto a cousa com alma tem melhoria sobre outra sem 
alma, tanto o rei deve ter excellencia sobre as leis: cá o rei deve de ser 
de tanta justiça e direito, que cumpridamente dê ás leis a execução; de 
outra guisa, mostrar-se-hia seu reino cheio de boas leis e maus 
costumes, que era cousa torpe de vêr. Pois duvidar se o rei ha de ser 
justiçoso, não é outra cousa senão duvidar se a regra ha de ser direita, a
qual, se em direitura desfalece, nenhuma cousa direita se pode por ella 
fazer. 
Outra razão por que a justiça é muito necessaria ao rei, assim é porque 
a justiça não tão sómente aformoseia os reis de virtude corporal, mas 
ainda espiritual, pois quanto a formosura do espirito tem avantagem da 
do corpo, tanta a justiça no rei é mais necessaria que outra formosura. 
A terceira razão se mostra da perfeição da bondade, porque então 
dizemos alguma cousa ser perfeita, quando fazer pode alguma 
semelhante a si, e portanto se chama uma cousa boa, quando sua 
bondade se pode estender a outros, ao menos, sequer por exemplo, e 
então se mostra, por pratica, quanto cada um é bom, quando é posto em 
senhorio. 
Porém, cumpre aos reis ser justiçosos por a todos seus sujeitos poder 
vir bem, e a nenhum o contrario, trabalhando que a justiça seja 
guardada, não sómente aos naturaes de seu reino, mas ainda aos de fóra 
d'elle, porque, negada a justiça a alguma pessoa, grande injuria é feita 
ao principe e a toda sua terra. 
D'esta virtude da justiça, que poucos acha que a queiram por hospeda, 
posto que rainha e senhora seja das outras virtudes, segundo diz Tullio, 
usou muito el-rei Dom Pedro, segundo vêr podem os que desejam de o 
saber, lendo parte de sua historia. 
E pois que elle, com bom desejo, por natural inclinação, refreou os 
males, regendo bem seu reino, ainda que outras minguas por elle 
passassem, de que penitencia podia fazer, de cuidar é, que houve o 
galardão da justiça, cuja folha e fructo é honrada fama n'este mundo e 
perduravel folgança no outro. 
 
*CAPITULO I* 
_Do reinado de el-rei Dom Pedro, oitavo rei de Portugal, e das 
condições que n'elle havia_.
Morto el-rei D. Affonso, como haveis ouvido, reinou seu filho, o 
infante Dom Pedro, havendo então de sua idade trinta e sete annos e um 
mez e dezoito dias. E porque dos filhos que houve, e de quem, e por 
que guisa, já compridamente havemos falado, não cumpre aqui arrazoar 
outra vez; mas das manhas, e condições, e estados de cada um, diremos 
adiante, muito brevemente, onde convier falar de seus feitos. 
Este rei Dom Pedro era muito gago, e foi sempre grande caçador e 
monteiro, em sendo infante e depois que foi rei, trazendo grande casa 
de caçadores e moços de monte e de aves, e cães, de todas maneiras 
que para taes jogos eram pertencentes. 
Elle era muito viandeiro, sem ser comedor mais que outro homem, que 
suas salas eram de praça em todos logares por onde andava, fartas de 
vianda, em grande abastança. 
Elle foi grande criador de fidalgos de linhagem, porque n'aquelle tempo 
não se costumava ser vassalo, se não filho e neto ou bisneto de fidalgo 
de linhagem; e por usança haviam então a quantia que ora chamam 
maravidis, dar-se no berço, logo que o filho do fidalgo nascia, e a outro 
nenhum não. 
Este rei accrescentou muito nas quantias dos fidalgos, depois da morte 
de el-rei seu padre, cá não embargando que el-rei D. Affonso fosse 
comprido de ardimento e muitas bondades, tachavam-no, porém, de ser 
escasso, e apertamento de grandeza. E el-rei Dom Pedro era em dar mui 
ledo, em tanto, que muitas vezes dizia que lhe afrouxassem a cinta, que 
então usavam não mui apertada, porque se lhe alargasse o corpo por 
mais espaçosamente poder dar; dizendo que o dia que o rei não dava, 
não devia ser havido por rei. 
Era ainda de bom desembargo aos que lhe requeriam bem e mercê, e tal 
ordenança tinha n'isto, que nenhum era detido em sua casa por cousa 
que lhe requeresse.    
    
		
	
	
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