A velhice do padre eterno | Page 9

Guerra Junqueiro
carne em plena orgia,
Emfim a saturnal da podre
burguezia,
Que resa como o papa e ri como Voltaire.
Morrendo o velho Deus, o velho Deus tirano,
Este mundo burguez,
catholico-romano
Encontrou-se sem fé, sem dogma, sem moral;
A
justiça era elle o Padre-omnipotente;
Esse Padre morreu; ficou nos
simplesmente
Um unico evangelho--o codigo penal.
A consciencia humana é um monte de destroços.
Foram-se as orações,
foram-se os padres-nossos,
Tombou a fé, tombou o céo, tombou o
altar;
E o velho Deus-castigo e o velho Deus-receio
É simplesmente um freio
Para conter a raiva á besta popular.
A crassa burguezia, essa recua fradesca,
Opipara, animal, silenica,

grotesca,
Namora a Deuza-carne e adora o Deus-milhão;
E as almas,
fermentando assim n'esta impureza,
Resvalam sensuaes do leito para
a meza.
Da meza para o chão.
Vendem-se a peso d'oiro as languidas donzellas,
Mais torpes que as cadellas,
Que ao menos dão de graça o libertino
amor,
E o Dever, a Saude, o Justo, o Verdadeiro,
Esses ricos metaes
fundem-se no brazeiro
D'um sensualismo espresso, atroz, devorador.
A agiotagem, a bolsa, a cotação dos fundos,
É o principio rei
dominador dos mundos,
É um sangue vital, forte como o cognac.

Engordae, engordae ó bravos _homens serios_,
Que servis para dar
esterco aos cemiterios
E musica a Offenbak.
A vergonha morreu, a dignidade foi-se.
_O mundo official_ è um
vergonhoso alcoice,
E a plebe tripudiando em horridas orgias
Lança
sobre o Direito um pustulento escarro,
E acende, cambaleando, a
ponta do cigarro
Na fogueira que abrasa o Louvre e as Tulherias.
A familha é um bordel. Os leitos sensuaes
São verdadeiramente
esgotos seminaes,
Eroticas latrinas,
Onde entre o tumultuar d'um debochado goso
Se
fabrica de noite o sangue escrofuloso
Das raças libertinas.
Calemo-nos. Eu oiço as ferraduras de Argus.
É a Ordem e a Lei;
correm a trotes largos,
Vêm n'esta direcção, esconde-te, Jesus!

Metamo-nos aqui n'um beco, anda ligeiro!
Que, se sabem quem és,
meu velho petroleiro,
Mandam-te pendurar segunda vez na cruz.

E agora, Filho, adeus. Eu vou dormir um pouco,
E tu, meu pobre louco,
Descança inda que seja um breve quarto
d'hora;
Tingem-se de vermelho as bandas do Oriente,
É hoje a
Alleluia, e necessariamente
Tens de resuscitar logo ao romper
d'aurora.
Eu mais feliz que tu, simples mortal que sou,
Eu, meu amigo, vou
Dormir até que chegue a hora do jantar.
Adeus,
e resuscita apenas surja o dia;
Se queres vem dormir á minha
hospedaria,
Que eu mando-te acordar.»
E Arouet partiu, soltando uma cruel risada
E Jesus ficou só na noite
desolada,
N'aquella colossal Babilonia impudente,
Entre quatro
milhões do almas--quatro milhões
De tigres, do reptis, de abutres e de
leões
Agachados na sombra ameaçadoramente!...
Quem a visse do alto essa Londres deserta
Com a fosforencia
esmorecida, incerta
Da luz do gaz a arder sob um cèo tumular,

Julgaria estar vendo um grande monstro escuro,
Como que um
Leviatham putrido n'um monturo
Immenso a fermentar.
A noite era sinistra. Os ventos a galope
Resfolegavam como as forjas
d'um ciclope
Com uivos de alienado e rugidos de feras.
E o mar
bramia ao longe athletico, espumante
Qual marmita profunda a ferver
trovejante
Sobre cem mil crateras.
E Christo foi andando errante, vagabundo
Atravez dessa vasta
imperatriz do mundo,
Opulenta Gomorra hidropica do vicio,
Que

Deus não enxofrou talvez, como costuma,
Porque além de estar caro
o enxofre, Deus em suma
Já não pode arruinar-se em fogos de
artificio.
E elle ia vendo os mil palacios portentosos
Onde a besta feliz dormia,
ebria de gosos,
Um inefavel somno.
Em quanto que a miseria anonima, esfaimada
Ás tres da madrugada
Disputava o jantar no enxurro aos cães sem
dono.
As altas cathedraes, aonde a borguezia
Vai arrotar um pouco á missa
do meio dia;
Tinham como que o ar d'um theatro fechado
O aspecto
mercantil d'um armazem colosso,
Em que Deus ao balcão vende os
dogmas por grosso
E o céo por atacado.
Os bancos, Pantagrueis do milhão, monumentos
De marmore e
granito e bronze, somnolentos
Molochs, cuja pança obesa é um
matadouro,
Na virtuosa paz de monstros em descanço
Digeriam de manso
Nos seus ventres de ferro um Himalaia d'oiro.
Nos mundos hospitaes, onde emfim a desgraça
Tem a consolação do
agonisar de graça,
Santos, monstros, heroes,--Tropmans, Valgeans,
Phrinés--
Anciavam no estertôr do tranze derradeiro,
--Lixo que um
bonzo vae entregar a um coveiro
Para o calcar aos pés.
E era aquella immundicie humana a humanidade!
Tinha valido bem a
pena na verdade
Pregado n'uma cruz morrer como um ladrão,
Para
ao cabo de dois mil annos vir achar
Pilatos sob o throno e Caifaz
sobre o altar
De diadema na fronte e baculo na mão!

Arrazou-se de pranto o olhar do Nazareno,
Aquelle olhar profundo,
aquelle olhar sereno
Que outr'ora deu alivio a tantos corações,
E a
linha virginal de seu perfil suave
Turbou-se, apresentando o aspecto
mudo e grave
Daz nobres afflições.
E marmoreo, espectral, com a fronte sombria
Banhada no suor
sangrento da agonia
Foi deitar-se outra vez na leiva tumular,

Athleta que expirou tranzido de mil dôres
E quer dormir, dormir entre
as hervas e as flores
Onde escorre piedosa a branca luz do luar.
E quando a christandade á volta do meio dia
Correu ao templo a ver o
entremez da Alleluia,
Em logar d'um Jesus banal de ciclorama
Subindo ao firmamento,
D'olhos azues n'um céu d'anil, tunica ao
vento,
Sobre nuvens
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