com sagacidade e facundia! 
Diz, por exemplo:--«Diante de tal ruina, do tempo da Cruzada de 
Godofredo, o illustre fidalgo lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo 
um dia com a Santa Veronica...»--E logo alastra a tremenda, turgida 
argumentação com que me deliu. Como porém as arengas que me 
attribue não são inferiores em sabio chorume e arrogancia theologica ás 
de Bossuet, eu não denunciei n'uma nota á Gazeta de Colonia--por que 
tortuoso artificio a afiada razão da Germania se enfeita assim de 
triumphos sobre a romba fé do Meio-Dia. 
Ha porém um ponto de Jerusalem Passeada que não posso deixar sem 
energica contestação. É quando o doutissimo Topsius allude a dois 
embrulhos de papel, que me acompanharam e me occuparam, na minha 
peregrinação, desde as viellas de Alexandria até ás quebradas do 
Carmello. N'aquella fórma rotunda que caracterisa a sua eloquencia 
universitaria, o dr. Topsius diz:--«O illustre fidalgo lusitano 
transportava alli restos dos seus antepassados, recolhidos por elle, antes 
de deixar o sólo sacro da patria, no seu velho solar torreado!...» 
Maneira de dizer singularmente fallaz e censuravel! Porque faz suppôr 
á Allemanha erudita que eu viajava pelas terras do Evangelho--trazendo 
embrulhados n'um papel pardo os ossos dos meus avós! 
Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. 
Não por me denunciar á Egreja como um profanador leviano de 
sepulturas domesticas: menos me pezam a mim, commendador e 
proprietario, as fulminações da Egreja--que as folhas sêccas que ás 
vezes cahem sobre o meu guardasol de cima d'um ramo morto: nem 
realmente a Egreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por 
enterrar um mólho d'ossos, se importa que elles para sempre jazam 
resguardados sob a rigida paz d'um marmore eterno, ou que andem 
chocalhados nas dobras molles d'um papel pardo. Mas a afirmação de 
Topsius desacredita-me perante a Burguezia Liberal:--e só da 
Burguezia Liberal, omnipresente e omnipotente, se alcançam, n'estes 
tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas da vida, desde os 
empregos nos bancos até ás commendas da Conceição. Eu tenho filhos, 
tenho ambições. Ora a Burguezia Liberal aprecia, recolhe, assimila com
alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares: é o vinho 
precioso e velho que vai apurar o vinho novo e crú: mas com razão 
detesta o bacharel, filho d'algo, que passeie por diante d'ella, enfunado 
e têso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados--como um 
sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ella lhe faltam. 
Por isso intímo o meu douto Topsius (que com seus penetrantes oculos 
viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egypto, já na terra de 
Canaan) a que na edição segunda de Jerusalem Passeada, sacudindo 
pudicos escrupulos de Academico e estreitos desdens de Philosopho, 
divulgue á Allemanha scientifica e á Allemanha sentimental qual era o 
recheio que continham esses papeis pardos--tão francamente como eu o 
revelo aos meus concidadãos n'estas paginas de repouso e de ferias, 
onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas 
pesadas roupagens da Historia, ora mais livre e saltando sob a caraça 
vistosa da Farça! 
 
I 
Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em theologia, 
author de uma devota Vida de Santa Philomena, e prior da 
Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora da Assumpção, 
chamava-se Rufino da Assumpção Raposo--e vivia em Evora com a 
minha avó, Philomena Raposo, por alcunha a «Repolhuda,» doceira na 
rua do Lagar dos Dizimos. O papá tinha um emprego no correio, e 
escrevia por gosto no _Pharol do Alemtejo_. 
Em 1853, um ecclesiastico illustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de 
Chorazin (que é em Galilêa), veio passae o S. João a Evora, a casa do 
conego Pitta, onde o papá muitas vezes á noite costumava ir tocar 
violão. Por cortezia com os dois sacerdotes, o papá publicou no Pharol 
uma chronica, laboriosamente respigada no Peculio de Prégadores, 
felicitando Evora «pela dita d'abrigar em seus muros o insigne prelado 
D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclarissima torre de santidade.» 
O bispo de Chorazin recortou este pedaço do Pharol para o metter entre 
as folhas do seu Breviario; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o
aceio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que elle cantava, 
acompanhando-se no violão, a xacara do conde Ordonho. Mas quando 
soube que este Rufino da Assumpção, tão moreno e sympathico, era o 
afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos 
no bom Seminario de S. José e nas veredas theologicas da Universidade, 
a sua affeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Evora 
deu-lhe um relogio de prata; e, por influencia d'elle, o papá, depois de 
arrastar alguns mezes a sua madraçaria pela alfandega do Porto, como 
aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfandega de 
Vianna. 
As macieiras cobriam-se de flôr quando o papá chegou ás veigas suaves 
d'Entre-Minho-e-Lima;    
    
		
	
	
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