A Gratidão | Page 2

Camilo Castelo Branco
esta hora, e com este tempo vieste até aqui com esta boa mulher.
--Desculpai, minha boa senhora,--disse a cega,--Rosinha é minha neta.
--Sim, snr.^a D. Thereza, é minha avó, de quem tantas vezes tenho fallado a v. exc.^a e...
--Ent?o porque n?o continuas?--lhe replicou D. Thereza.
A pequena levantou para D. Thereza os seus lindos olhos azues, com uma tal express?o de supplica, que a commoveu.
--Falla, falla, minha menina. N?o tenhas receio. Queres pedir-me alguma cousa, n?o é assim?
--Vêde, minha boa senhora,--disse Rosa, contendo as lagrimas a custo,--eu e minha avó, somos muito desgra?adas. Meu pai, que era rachador de lenha, feriu-se pelo S. Jo?o em uma perna com o machado. Minha m?i mandou-me chamar a toda a pressa o snr. Pereira, que é um homem muito entendido. Fui, o mais depressa que pude, e quando cheguei a casa do snr. Pereira estava elle para sahir, e n?o queria vir commigo para n?o torcer o seu caminho; mas eu tanto lhe pedi, que sempre me acompanhou. Quando viu a perna a meu pai, logo disse, que estava muito mal, e que n?o promettia cural-o. Duas semanas depois veio á ferida uma molestia, de que me n?o lembra agora o nome, e meu pai morreu.
Rosa calou-se chorando, e a cega tambem solu?ava. D. Thereza abra?ou a rapariguinha, apertou a m?o á pobre velha, e disse:
--Para hoje já é de mais, ámanh?...
--Perd?e-me, snr.^a D. Thereza,--replicou Rosa,--mas é melhor que eu termine hoje,--e continuou:
--Havia um mez que meu pai tinha morrido, quando minha m?i cahiu de cama; a febre n?o a deixava. Eu ia aos campos apanhar as hervas, que minha avó me ensinava, para lhe fazer remedios, mas nada sarava minha m?i. Um dia abra?ou-me e disse-me:
?Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com teu pai, mas que será de ti?
Trabalharei, lhe respondi.
és muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te receba sob a sua santa guarda, e te n?o abandone. Nunca desampares tua avó, sê-lhe obediente e carinhosa..., ainda queria fallar, mas n?o p?de, abra?ou-me e á avósinha, e expirou.?
Desde ent?o alguns rachadores, amigos de meu pai, nos recolheram e soccorreram; mas como n?o s?o ricos, e precisam de mudar de terra por n?o terem aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho á senhora, pois que, sendo t?o boa, n?o deixaria de nos recolher, que somos t?o desgra?adas. Sou fraquinha, mas posso trabalhar. Sei fiar, e come?o a lavar. Guardarei os bois, e os carneiros e tratarei do gallinheiro. Minha avó tambem fia muito bem e estou muito certa, que a ha-de satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora--disse Rosa ajoelhando-se aos pés de D. Thereza--n?o nos abandoneis; satisfazemos-nos com pouco, e faremos todo o possivel para vos agradar, e rogaremos continuamente a Deus pela vossa vida e felicidade.
D. Thereza commoveu-se tanto, com a singeleza e candura d'esta supplica, que duas lagrimas lhe brilharam nos olhos.
--Levanta-te, Rosinha, ámanh? fallaremos n'isso. Tu e tua avó ide-vos deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se n?o tenha piedade de ti.
Rosa beijou com reconhecimento as m?os de D. Thereza, e a cega encheu-a de ben??os. D. Thereza mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e quente, em que um somno reparador lhe reanimou as for?as.
III.
Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se cedo, mas fez um esfor?o para mostrar os seus desejos a D. Thereza.
Arranjou-se, o melhor que p?de, com os seus velhos vestidos, e, depois de ter dirigido mentalmente a Deus uma ora??o fervente, desceu ao andar terreo.
--Já a pé,--lhe disse alegremente D. Thereza.
--Estava t?o can?ada do caminho d'hontem, que receei, já fosse tarde; mas gra?as aos vossos beneficios, minha senhora, já estou prompta, para o que me determinardes.
--E tua avó?
--Ainda dorme. é t?o velhinha e t?o doente, que vos pe?o tenhaes piedade d'ella.
Rosa ergueu as m?os, e esperou tremula a resposta da dona da quinta.
D. Thereza de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa. Tendo viuvado ha doze annos, geria com tanto acerto e economia as suas propriedades, que a sua fortuna tinha augmentado consideravelmente.
Os visinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que tinha alcan?ado a fortuna, que possuia, pois que em qualquer cousa sempre tinha que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando tantas esmolas, o dinheiro nunca lhe havia de faltar.
Fosse como fosse, o que sei é, que D. Thereza sensibilisou-se tanto com a historia de Rosinha, que, quando ella ergueu as m?os, e a viu com os olhos arrasados de lagrimas, esperando a resposta, disse para si; que a uma supplica t?o humilde e cheia de tanto amor filial, era impossivel resistir.
N'este momento quem accusasse de avarenta D. Thereza de Sousa, seria injusto com ella, por que, recolhendo a avó e neta,
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 21
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.