A Cidade e as Serras | Page 2

Eça de Queirós
a mulher, a snr.^a D. Angelina Fafes (da t?o fallada casa dos Fafes da Avellan); com o filho, o 'Cinthinho, menino amarellinho, mollesinho, coberto de caró?os e leicen?os; com a aia e com o moleque. Nas costas da Cantabria o paquete encontrou t?o rijos mares que a snr.^a D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometteu ao Senhor dos Passos d'Alcantara uma cor?a d'espinhos, de ouro, com as gottas de sangue em rubis do Pegu. Em Bayonna, onde arribaram, 'Cinthinho teve ithericia. Na estrada d'Orleans, n'uma noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o nedio senhor, a delicada senhora da casa da Avellan, o menino, marcharam tres horas na chuva e na lama do exilio até uma aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram nos bancos d'uma taberna. No ?Hotel dos Santos Padres?, em Paris, soffreram os terrores d'um fogo que rebentára na cavalhari?a, sob o quarto de D. Gali?o, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao pateo, enterrou o pé nú numa lasca de vidro. Ent?o ergueu amargamente ao céo o punho cabelludo, e rugiu:
--Irra! é de mais!
Logo n'essa semana, sem escolher, Jacintho Gali?o comprou a um Principe polaco, que depois da tomada de Varsovia se mettera frade cartuxo, aquelle palacete dos Campos Elyseos, n.^o 202. E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descan?ando de tantas agita??es, n'uma vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros d'emigra??o (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigest?o, d'uma lampreia d'escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os amigos pensavam que a snr.^a D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as cale?as que racham. E n?o se queria separar do seu Confessor, nem do seu Medico, que t?o bem lhe comprehendiam os escrupulos e a asthma.
--Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarára ella), ainda que me faz falta a boa agua d'Alcolena... O 'Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.
O 'Cinthinho crescèra. Era um mo?o mais esguio e livido que um cirio, de longos cabellos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse e de suffoca??es, errava em camisa com uma lamparina atravez do 202; e os creados na copa sempre lhe chamavam a Sombra. N'essa sua mudez e indecis?o de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada fl?r dos seus vinte annos, brotou n'elle outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma r?la, educada n'um convento de Paris, e t?o habilidosa que esmaltava, dourava, concertava relogios e fabricava chapéos de feltro. No outomno de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elyseos, o 'Cinthinho cuspilhou sangue. O medico, acarinhando o queixo e com uma ruga seria na testa immensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tepidas areias d'Arcachon.
'Cinthinho porém, no seu afèrro de sombra, n?o se quiz arredar da Therezinha Velho, de quem se tornára, atravez de Paris, a muda, tard?nha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Tres mezes e tres dias depois do seu enterro o meu Jacintho nasceu.
* * * * *
Desde o ber?o, onde a avó espalhava funcho e ambar para afugentar a Sorte-Ruim, Jacintho medrou com a seguran?a, a rijeza, a seiva rica d'um pinheiro das dunas.
N?o teve sarampo e n?o teve lombrigas. As Letras, a Taboada, o Latim entraram por elle t?o facilmente como o sol por uma vidra?a. Entre os camaradas, nos pateos dos collegios, erguendo a sua espada de lata e lan?ando um brado de commando, foi logo o vencedor, o Rei que se adula, e a quem se cede a fructa das merendas. Na edade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormentos da sensibilidade;--nem crepusculos quentes o retiveram na solid?o d'uma janella, padecendo d'um desejo sem fórma e sem nome. Todos os seus amigos (eramos tres, contando o seu velho escudeiro preto, o Grillo) lhe conservaram sempre amizades puras e certas--sem que jámais a participa??o do seu luxo as avivasse ou fossem desanimadas pelas evidencias do seu egoismo. Sem cora??o bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel--esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, á maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando. Rijo, rico, indifferente ao Estado e ao Governo dos Homens, nunca lhe conhecemos outra ambi??o além de comprehender bem as Ideias
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