Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II | Page 2

Alexandre Herculano
antigo eremita, todos os animos capazes de nobre esfor?o para nova cruzada. Ergueremos um brado a favor dos monumentos da historia, da arte, da gloria nacional, que todos os dias vemos desabar em ruinas. Esses que julgam progresso apagar ou transfigurar os vestigios venerandos da antiguidade que sorriam das nossas cren?as supersticiosas; nós sorriremos tambem, mas de lastima, e as gera??es mais illustradas que h?o de vir decidir?o qual destes sorrisos significava a ignorancia e a barbaridade, e se n?o existe uma supersti??o do presente como ha a supersti??o do passado.
A mais recente quadra de destrui??o para os monumentos, tanto artisticos como historicos, de Portugal, póde dividir-se em duas epochas bem distinctas. Acabou uma: a outra é aquella em que vivemos.
A ultima metade do seculo XVIII e os annos já decorridos deste seculo tem sido um periodo de reforma ou antes de revolu??o. A revolu??o n?o é de hontem. Quasi sempre as manifesta??es ruidosas e, digamos assim, externas das epochas de grandes transforma??es vem muito depois de iniciadas estas. No seio da formula social que vai fenecer ha a gesta??o da formula social que surge. Quando as labaredas rompem pelas janellas do edificio, ha muito que o incendio lavra pelo interior dos aposentos.
Entre nós, as reformas come?ou-as um homem grande, mas que era homem do seu tempo. Genio positivo e mui pouco especulativo, ministro de um rei absoluto, e sabendo que, se n?o caminhasse depressa, ficaria no caminho, o marquez de Pombal fez resurgir de salto sciencia, artes, industria e administra??o. A maioria do paiz obedecia ás reformas, mas sem as comprehender. O circulo dos individuos que alcan?avam o valor dellas e o influxo que deviam ter no futuro, era assás limitado. A inicia??o estava feita, mas o fogo tinha de lavrar muito tempo debaixo da cinzas. Exteriormente, a maior parte das reformas, destoando de habitos inveterados, repugnando n?o raro a opini?es vulgares, devendo ter resultados remotos, que o commum dos espiritos n?o sabiam antever, nem podiam apreciar, definharam-se ou morreram logo que se quebrou o bra?o de ferro que as realisára e mantivera, sorte ordinaria de todos os commettimentos sociaes que antecedem a diffus?o das idéas que representam. O conde de Oeiras, pondo os estudos ao nivel dos do resto da Europa, fez acceitar o movimento scientifico desta; mas as intelligencias reconduzidas de salto ao bom caminho, sem transi??es graduaes, acceitaram mais as fórmas do que comprehenderam o espirito.
O que succedeu na sciencia succedeu na litteratura. Acabaram os acrostichos, os restos do gongorismo, os serm?es de antitheses e argucias, os elogios e conferencias palavrosas e retumbantes da Academia da Historia, onde o proprio reformador tambem peccara: ficámos, porém, com a litteratura á Luiz XIV, cuja influencia em Portugal come?ara a despontar no horisonte desde o come?o daquelle seculo e que, depois, os nossos innocentes Arcades acceitaram como emana??o legitima da arte grega e romana. Peior do que na sciencia, a regenera??o litteraria, desprovida de nacionalidade, alheia ás tradi??es portuguesas, nascia, digamos assim, morta. O mau gosto desapparecera, mas em logar delle ficava cousa que pouco mais valia; a inspira??o pautada, o estro convencional e a vacuidade da idéa escondida debaixo da opulencia da fórma.
Se, em parte, as sciencias e a industria foram introduzidas, ou como inventadas, no reinado do marquez de Pombal, as artes plasticas, e principalmente a architectura, cuja historia, mais do que a de nenhuma arte, neste momento nos importa, já anteriormente existiam. A epocha de D. Jo?o V foi uma epocha de luxo e riqueza lan?ados sobre um paiz miseravel, como alfombra preciosa em pavimento carunchoso e podre. Esse luxo e riqueza, que brotavam das minas da America, foram favoraveis aos artistas. As obras magnificas do nosso Luiz XIV, ou antes do simia de Luiz XIV, e mais que tudo a edifica??o do fradesco palacio de Mafra fizeram apparecer estatuarios, esculptores, architectos. Achou-os o conde de Oeiras, e deu aos seus talentos nova applica??o. Ao gosto corrompido da architectura italiana, que era a seguida em Portugal, fez substituir um gosto mais severo, mais util e mais mesquinho. Era o homem politico, o homem da vida practica dirigindo as artes: eram as artes reduzidas pura e simplesmente a um ramo de administra??o. Compare-se o caracter geral do convento de Mafra com o das grandes obras do marquez de Pombal, o plano da nova Lisboa, o Terreiro do Pa?o, a Alfandega, o Arsenal da Marinha, a parte moderna dos edificios da Universidade de Coimbra. Em Mafra, achar-se-h?o a exagera??o de ornatos e os primores do cinzel, mas nenhuma inspira??o verdadeiramente nobre e grande; achar-se-ha o desmesurado supprindo o sublime: nas obras do marquez, só se encontram largas moles desadornadas, edificios monotonos, postoque uteis ou necessarios, uma pra?a magnifica, onde campeiam monolithos enormes e que seriam admiraveis se n?o estivessem cobertos de remendos e parches, e cujas paredes se
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