Miniaturas Romanticas | Page 2

Sebastião de Magalhães Lima

estar triste, tendo-a aqui ao meu lado? Não vê que sou tão sua
amiguinha, e como já estou tão alegre?
--Por quem és, Leonor, nada me queiras occultar. Poupa-me a um
sacrificio doloroso, dispensando-me a sinceridade que mereço.
Comprehendo a tua dôr, como se minha já fosse. Tu amas, bem o sei.
Tenho presenciado tudo. Nada me é extranho.
Leonor córou de involuntario receio, ao ouvir as ternas expressões de
sua mãe, e por alguns minutos permaneceu em scismador enleio, como
que subitamente preoccupada por estranho pensamento. Recobrando,
porém, a serenidade, que momentaneamente houvera perdido,
prorompeu nos termos seguintes:
--É verdade, minha mãe, nada lhe desejo nem posso occultar. Eu amo
meu primo Mauricio. Amo-o com toda a pureza da minha alma, e em
todo o fervor da minha existencia. Uma circumstancia poderosa veio,
comtudo, cavar um abysmo entre nós, e forçar-me á dura collisão, em
que, máu grado meu, me tenho conservado. Foi esse o motivo por que
ha mais tempo lh'o não declarei, intimamente convencida de que a
minha bondosa mãe perdoaria mais uma vez esta falta á sua filhinha,
que tanta felicidade lhe deseja.
--Julgas, talvez, que te culpo por isso; antes, pelo contrario, não podia

achar mais acertada a tua escolha. Mauricio é um rapaz serio, capaz de
te retribuir o teu affecto, e de desempenhar no futuro a missão d'um
marido exemplar.
--Sem duvida, tambem assim o creio. Mas não lhe tenho já declarado
por vezes que só me unirei eternamente a um homem de muita
instrucção e de grande saber?
--Isso é uma fraqueza da tua parte, que se virá a dissipar com o tempo;
sendo que muitas vezes os homens mais celebres são exactamente
aquelles que menos se coadunam com a indole do viver domestico.
Além d'isso, teu primo tem o desinvolvimento sufficiente para te saber
estimar; e eu morreria tranquilla se um dia tivesse a dita de te ver
enlaçada pelo affecto áquelle que já posso appellidar--meu segundo
filho.
--Oxalá assim succeda, replicou Leonor, com um disfarce feliz. O
futuro só a Deus pertence. Amar a mediocridade, isso só pode ser o
apanagio das mulheres vulgares. Por hoje não fallemos mais n'isso.
Vamos antes esperar as pessoas da nossa intimidade, que decerto não
perderão esta noite, para nos prestarem agradavel companhia.
Dirigiram-se depois para casa, e assim correu o resto da tarde sem
maior incidente.
Ás nove horas da noite já se cruzavam nas salas algumas familias, que
expressamente tinham vindo festejar o anniversario natalicio de Leonor,
com brindes de toda a especie. Esta não sabia como agradecer tantos e
tão prolongados obsequios, que a cada passo lhe prodigalisavam os
convivas recemchegados. No entretanto todos se retiravam sobejamente
remunerados, com o galardão do seu peregrino talento e natural
candura.
Mauricio, como era de esperar, abrilhantou esta festa com a sua
presença. Logo, porém, notou em sua prima um ardente desejo de o
evitar. Na primeira quadrilha viu em Leonor hesitação, e que só forçada
condescendencia a obrigava a dançar com elle.

Não sabendo a que attribuir tão rapida transformação, recorreu a sua tia.
Cecilia, que a principio vacillara em relatar o acontecido a seu sobrinho,
não pôde de modo algum abafar o grito imperioso do seu coração,
patenteando-lhe tanto ao vivo o pensamento de sua filha, que Mauricio
a custo reteve uma lagrima de saudade por aquella que já ha muito
dourava o horisonte de sua existencia.
E quantas vezes um sorriso nos labios occulta uma grande dôr!...
Mauricio, como se nada com elle houvera passado, voltou á sala, e
dançou até ver a reunião completamente terminada.
Seriam duas horas da noite. Despediu-se de sua tia, e sahiu. Mas, ai do
malfortunado mancebo!...
Longe de se dirigir para casa, divagou triste e pensativo pelas ruas da
capital até ao alvorecer do dia, sendo a cada passo assaltado por
dolorosas recordações, que lhe dilaceravam as fibras do seu apaixonado
coração.
No dia immediato Mauricio havia desapparecido de Lisboa!...
* * * * *
Deixemos agora esvoaçar quatro annos nas azas do passado, e voltemos
a Bemfica.
Ali reconheceremos Leonor, proxima de sua mãe, trabalhando
diligentemente. Aquella flor, que ha cinco annos se ostentava tão altiva
e louçã, vêde-a, presentemente, como vai estiolando e fenecendo, e ai
d'ella!... se o céu, na sua infinita misericordia, lhe não enviar o orvalho
que lhe restitua o viço e frescor!
Estavamos, então, em maio de 1860, cujo mez fôra assignalado pela
rapida ausencia de Mauricio. E n'isto fallava a virtuosa mãe a sua filha,
enxugando de quando a quando uma lagrima, que espontanea lhe rolava
pelas faces. Não era tanto o desapparecimento de seu sobrinho que a
affligia, como ella julgar-se a principal causa d'esse fatal evento.

Leonor vivificava o pezar de sua pobre mãe com gostosas consolações,
que, puras e castas, brotavam de seu virginal seio.
Seriam talvez cinco
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