Canções | Page 2

António Botto
o
seu grotêsco nos braços tolhidos da Noção; o amôr, Grande e Unico
como o Sól, embora disperso em muitas laminas doiradas;--o amôr que
ergue n'estas canções o seu grito immortal; óra varonil investindo na
exaltação da conquista, óra femenil abandonando-se na ancia da dádiva;
palpitando nos peitos viris, vencendo nos seios amorosos. É o amôr
profano, profano como todos os amôres humanos, os mais divinos ou
os mais terrênos. É tudo que se arrasta, tudo que se lamenta em redor
do homem, supplicando um immensa simpathia para a grande e
inalteravel Animalidade, a qual é como um vasto campo, onde homens,
insectos, e gados, se agitam, entre a poderosa serenidade das formas
vegetaes, sob a mesma claridade fecundante, sob a mesma armadura de
velho oiro que os une e assimilla.
A inspiração do poeta é nobre e ousada, porque é dirigida pelo carinho
tutelar da belleza e da humanidade. Elle faz da sonoridade das palavras
a escolha mais rythmica, mas quando essa phonetica obedeça
doutamente á minucia exigente do seu espirito raro d'estylista
alexandrino, ornado, expandido nas bellas lettras. A sua Arte é toda
harmoniosa d'ironia; d'essa ironia, d'essa deidade antiga forçando a
intelligencia a perdoar aos homens a sua presença ruidosa e feroz, para
a posse da mais gentil das coragens:--sorrir! Então_ António Botto
_não faz da eterna ignorancia uma tortura, mas uma suave piedade.
Dentro do mysterio Universal:--do seio que sente e concebe, da
semente que germina e emsombra, nada será espantoso, nada será
extranho. As combinações abstractas o poeta cede as combinações
sensiveis; a emoção pura, a sensibilidade consciente, a toada muzical e
branda. A sua tranquilla acceitação dos dilêmas ímmutaveis pairando
na vida, a sua comprehensão logica, a sua natural intuíção, animam-nos
d'um prazer juvenil ao fallar do Artista e das suas_ Canções_. Cantam
ellas a tréva do saber mesquinho dos homens, a illusão d'onde nascem
as angustias para a posse das venturas, a amizade nos peitos como
desenhos pueris na superficie das aguas. Cantam dôces crepusculos,

onde o Ideal, na solidão e na morte, é sempre perfeito porque fóge
como os Sóes. São canções onde a angustia é uma elegia de
condescendencias. O homem nascendo para acreditar e para servir, o
seu fanatismo vibra não das verdades mais demonstradas, mas, das
illusões mais bellas. Essa illusão é a Arte, essa Arte uma dôce ironia de
confôrto bello. E o homem vae sempre imaginando e soffrendo. Entre
Platão e Phidias, Lucrecio e Virgilio, os Medicis e Miguel-Angelo,
Luiz XIV e Racine, Gœthe e Beethoven, existe a mesma comunhão de
luminosidade divina, onde Jesus e São Francisco d'Assis, passam
amenamente, para fazer reinar no coração dos homens uma esperança
sem fim e um encantamento sem verdade. Cantar a bondade ou a
belleza humana, é reconsiliar a humanidade com a sua impudicia e o
seu egoismo.--Impudicia e egoismo, perduraveis razões de todo o sêr
humano! É por essa orchestração sublime que o tédio cede á vida uma
moráda d'eleição, uma resignação consiliante a salutar. É assim pois,
colhendo d'um clamôr pavoroso, uma symphonia unisona, vestindo
com uma preciosa ironia os penosos fatalismos das realidades, e
excellando na dificil maneira de ser simples, que_ António Botto
_entôa primorosamente, entre sêdas e vinhos, a negra historia dos
mortaes:--O AMÔR E A DOR._
+I+
A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até
sonhei que morria.
E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos
teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas,
velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em
surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;

Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu... devagar
morrendo.
O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem
lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,

Estava todo coberto de lucto.

Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;

Beijámo-nos doidamente...
--Era dia!
E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão
rolaram... e assim ficaram!...
+II+
Por uma noite de outomno
Lá n'essa nave sombría,
Hei-de contigo
deitar-me,
Mulher branca e muda e fria!
Hei-de possuir na morte
O teu corpo de marfim,
Mulher que nunca
me olhaste,
Que nunca pensaste em mim...
E quando, no fim do mundo,
A trombêta, além, se ouvir,

Apertar-te-hei mais ainda,
--Não te deixarei partir!
A tua boca formosa
Será sempre dos meus beijos;
E o teu corpo a
minha patria,
A patria dos meus desejos.
+III+
Andáva a lua nos céus
Com o seu bando de estrellas.
Na minha alcova,
Ardiam vellas,
Em candelabros de bronze.
Pelo chão, em desalinho,
Os velludos pareciam
Ondas de sangue e
ondas de vinho.
Elle olhava-me scismado;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a
lua branca e núa
Que pelos céus caminhava.
Aproximou-se; e em delirio
Procurou ávidamente,
E ávidamente
beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.
Arrastou-me para Elle,
E, encostado ao meu hombro,
Fallou-me

d'um pagem loiro
Que morrêra de Saudade,
Á beira-mar, a cantar...
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A
linda noite sombría.
Déram-se as bocas n'um beijo,
--Um beijo nervoso e lento...
O
homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento.
Vinha longe a
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