A velhice do padre eterno | Page 2

Guerra Junqueiro
a alma--e resta um fragmento d'argila.
E para onde vae esse clar?o? Mysterio...?N?o sei... Mas sei que sempre ha-de arder e brilhar,?Quer tivesse incendiado o craneo de Tiberio,?Quer tivesse aureolado a fronte de Joanna Darc.
Sim, creio que depois do derradeiro somno?Ha-de haver uma treva e ha-de haver uma luz?Para o vicio que morre ovante sobre um throno,?Para o santo que expira inerme n'uma cruz.
Tenho uma cren?a firme, uma cren?a robusta?N'um Deus que ha-de guardar por sua propria m?o?N'uma jaula de ferro a alma de Lucusta,?N'um relicario d'oiro a alma de Plat?o.
Mas tambem acredito, embora isso vos peze,?E me julgueis talvez o maior dos atheus,?Que no universo inteiro ha uma só diocese?E uma só cathedral com um só bispo--Deus.
E muito embora a vossa egreja se contriste?E a excommunh?o papal nos abraze e destrua,?A analyse é feroz como uma lan?a em riste?E a verdade cruel como uma espada nua.
Cultos, religi?es, biblias, dogmas, assombros,?S?o como a cinza v? que sepultou Pompeia.?Exhumemos a fé d'esse mont?o de escombros,?Desentulhemos Deus d'essa aluvi?o de areia.
E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,?Ha-de fazer, na mesma aspira??o reunida,?Da raz?o e da fé os dois olhos da alma,?Da verdade e da cren?a os dois polos da vida.
A cren?a é como o luar que nas trevas fluctua;?A raz?o é do céo o explendido pharol:?Para a noite da morte é que Deus nos deu lua...?Para o dia da vida é que Deus fez o sol.

Mas, ai eu comprehendo os martyrios secretos?Do pobre camponez, já quasi secular,?Que vê tombar por terra o seu ninho de affectos,?A casa onde nasceu seu pae, e onde os seus netos?Lhe fechariam, morto, o escurecido olhar.?Comprehendo o pavor e a lividez tremente?De quem em noite má, caliginosa e fria?Atravessa a montanha á luz d'um facho ardente?E uma rajada vem alucinadamente?Apagar-lh'o c'o'a aza athletica e sombria,?Deixando-o fulminado e quazi sem sentidos?A ouvir o ulular das feras e os bramidos?Do ciclone que explue rouco do sorvedoiro?E se enrosca furioso aos platanos partidos?A estrangulal-os, como uma giboia um toiro.
Comprehendo a agonia, o desespero insano?Do naufrago na rocha, entre o abysmo do oceano,?Vendo rolar, rugir os glaucos vagalh?es?Como uma cordilheira herculea de montanhas,?Com jaulas collossaes de bronze nas entranhas,?E um domador lá dentro a chicotear trov?es.
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O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,
é um Deus que para nós ha muito que está morto,
E que inda imaginaes no entretanto immortal.
Vivei e adormecei n'essa cren?a illusoria,
Já n?o podeis transp?r os mil annos da historia
Que v?o do vosso credo absurdo ao nosso ideal.
Vivei e adormecei n'essa illus?o sagrada,
Fitando até morrer os olhos de Jesus,
Como o ephemero v?o que dura um quasi nada,
Que nasce de manh? n'um raio d'alvorada,
E expira ao p?r do sol n'outro raio de luz.
Eu bem sei que essa cren?a ignorante e sincera,
N?o é a que illumina as bandas do Porvir.
Mas vós sois o Passado, e a cren?a é como a hera
Que sustenta e dá inda um tom de primavera
Aos velhos torre?es gothicos a cahir.
Sim, essa cren?a é um erro, uma illus?o, é certo;
Mas triste de quem vae pelo areal deserto
Vagabundo, esfaímado e nú como Caim,
Sem nunca ver ao longe os palacios radiantes
D'uma cidade d'oiro e marmore e diamantes
No chimerico azul d'essa amplid?o sem fim!
Quem ha-de arrancar pois do seu piedoso engaste
O vosso ingenuo ideal, ó tremulos velhinhos,
Se a chimera é uma rosa e a existencia uma haste,
Rosa cheia d'aroma e haste cheia de espinhos!
Quem vos ha-de cortar a flor da vossa esp'ran?a,
Quem vos ha-de apagar a angelica vis?o,
Se essa luz para vós é como uma crean?a
Que guia n'uma estrada um cégo pela m?o!
Quem vos ha-de acordar d'esse sonho encantado?!
Quem vos ha-de mostrar a evidencia cruel?!
Ah! deixemos a ave ao ramo já quebrado,
E deixemos fazer ao enxame doirado
No tronco que está morto o seu favo de mel!
ó velhos alde?es, exhaustos de fadiga,
Que andaes de sol a sol na terra a mourejar,
Roubar-vos da vos'alma a vossa cren?a antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As tres achas que leva á noite para o lar!
Oh, n?o! guardae-a bem essa cren?a d'outrora;
é ella quem vos dá a paz benigna e santa,
Como a paz d'um vergel inundado d'aurora,
Onde o trabalho ri e onde a miseria canta.
Guardae-a sim, guardae! E quando a morte em breve
Vos entre na choupana esqualida e feroz,
A agonia será bem rapida e bem leve,
Porque um anjo de Deus mais alvo do que a neve
Ha-de estender sorrindo as azas sobre vós.
E vós conhecereis em seu olhar materno
Que é o anjo que emballou vosso somno infantil,
E que hoje vem do céo mandado pelo Eterno,
Para sorrir na morte ao vosso branco inverno,
Como sorriu no ber?o ao vosso claro Abril.
E ao pender-vos gelada a vossa fronte alabastrina?Irá levar a Deus o vosso cora??o,?T?o manso e virginal, t?o novo e t?o perfeito,?Que Deus ha-de beijal-o e aquecel-o no peito,?Como se acaso fosse uma pomba divina,?Que viesse cahir-lhe exanime na m?o!
A VINHA DO SENHOR
I
Existiu n'outro tempo uma vinha
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