A Relíquia | Page 2

Eça de Queirós
com sagacidade e facundia!
Diz, por exemplo:--«Diante de tal ruina, do tempo da Cruzada de
Godofredo, o illustre fidalgo lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo
um dia com a Santa Veronica...»--E logo alastra a tremenda, turgida
argumentação com que me deliu. Como porém as arengas que me
attribue não são inferiores em sabio chorume e arrogancia theologica ás
de Bossuet, eu não denunciei n'uma nota á Gazeta de Colonia--por que
tortuoso artificio a afiada razão da Germania se enfeita assim de
triumphos sobre a romba fé do Meio-Dia.
Ha porém um ponto de Jerusalem Passeada que não posso deixar sem
energica contestação. É quando o doutissimo Topsius allude a dois
embrulhos de papel, que me acompanharam e me occuparam, na minha
peregrinação, desde as viellas de Alexandria até ás quebradas do
Carmello. N'aquella fórma rotunda que caracterisa a sua eloquencia
universitaria, o dr. Topsius diz:--«O illustre fidalgo lusitano
transportava alli restos dos seus antepassados, recolhidos por elle, antes
de deixar o sólo sacro da patria, no seu velho solar torreado!...»
Maneira de dizer singularmente fallaz e censuravel! Porque faz suppôr
á Allemanha erudita que eu viajava pelas terras do Evangelho--trazendo
embrulhados n'um papel pardo os ossos dos meus avós!
Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir.
Não por me denunciar á Egreja como um profanador leviano de
sepulturas domesticas: menos me pezam a mim, commendador e
proprietario, as fulminações da Egreja--que as folhas sêccas que ás
vezes cahem sobre o meu guardasol de cima d'um ramo morto: nem
realmente a Egreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por
enterrar um mólho d'ossos, se importa que elles para sempre jazam
resguardados sob a rigida paz d'um marmore eterno, ou que andem
chocalhados nas dobras molles d'um papel pardo. Mas a afirmação de
Topsius desacredita-me perante a Burguezia Liberal:--e só da
Burguezia Liberal, omnipresente e omnipotente, se alcançam, n'estes
tempos de semitismo e de capitalismo, as coisas boas da vida, desde os
empregos nos bancos até ás commendas da Conceição. Eu tenho filhos,
tenho ambições. Ora a Burguezia Liberal aprecia, recolhe, assimila com

alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares: é o vinho
precioso e velho que vai apurar o vinho novo e crú: mas com razão
detesta o bacharel, filho d'algo, que passeie por diante d'ella, enfunado
e têso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados--como um
sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ella lhe faltam.
Por isso intímo o meu douto Topsius (que com seus penetrantes oculos
viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egypto, já na terra de
Canaan) a que na edição segunda de Jerusalem Passeada, sacudindo
pudicos escrupulos de Academico e estreitos desdens de Philosopho,
divulgue á Allemanha scientifica e á Allemanha sentimental qual era o
recheio que continham esses papeis pardos--tão francamente como eu o
revelo aos meus concidadãos n'estas paginas de repouso e de ferias,
onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas
pesadas roupagens da Historia, ora mais livre e saltando sob a caraça
vistosa da Farça!

I
Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em theologia,
author de uma devota Vida de Santa Philomena, e prior da
Amendoeirinha. Meu pai, afilhado de Nossa Senhora da Assumpção,
chamava-se Rufino da Assumpção Raposo--e vivia em Evora com a
minha avó, Philomena Raposo, por alcunha a «Repolhuda,» doceira na
rua do Lagar dos Dizimos. O papá tinha um emprego no correio, e
escrevia por gosto no _Pharol do Alemtejo_.
Em 1853, um ecclesiastico illustre, D. Gaspar de Lorena, bispo de
Chorazin (que é em Galilêa), veio passae o S. João a Evora, a casa do
conego Pitta, onde o papá muitas vezes á noite costumava ir tocar
violão. Por cortezia com os dois sacerdotes, o papá publicou no Pharol
uma chronica, laboriosamente respigada no Peculio de Prégadores,
felicitando Evora «pela dita d'abrigar em seus muros o insigne prelado
D. Gaspar, lume fulgente da Igreja, e preclarissima torre de santidade.»
O bispo de Chorazin recortou este pedaço do Pharol para o metter entre
as folhas do seu Breviario; e tudo no papá lhe começou a agradar, até o

aceio da sua roupa branca, até a graça chorosa com que elle cantava,
acompanhando-se no violão, a xacara do conde Ordonho. Mas quando
soube que este Rufino da Assumpção, tão moreno e sympathico, era o
afilhado carnal do seu velho Rufino da Conceição, camarada de estudos
no bom Seminario de S. José e nas veredas theologicas da Universidade,
a sua affeição pelo papá tornou-se extremosa. Antes de partir de Evora
deu-lhe um relogio de prata; e, por influencia d'elle, o papá, depois de
arrastar alguns mezes a sua madraçaria pela alfandega do Porto, como
aspirante, foi nomeado, escandalosamente, director da alfandega de
Vianna.
As macieiras cobriam-se de flôr quando o papá chegou ás veigas suaves
d'Entre-Minho-e-Lima;
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